O
ESTADO LEIGO
Claudio
Fonteles- ex sub Procurador Geral da República
Não
é de hoje, e com persistência, as grandes empresas jornalísticas de nosso País,
sempre que atingem amplo espaço público questões pertinentes à defesa da vida,
ou à reflexão sobre a família, vociferam, dogmáticas, em defesa do
que chamam: o Estado laico
Querem estabelecer que a República laica não tolera
o tratamento de assuntos religiosos, confinados, então, à consciência
individual de cada uma das pessoas, e inaceitáveis à difusão pública.
Isso nada tem a ver com República laica. Conduz-nos a
gritante erro essa imposição do pensar, “politicamente correto”, a que nos
submete o stablishment midiático.
O
consagrado Professor de Direito Constitucional José Gomes Canotilho, em sua
obra Direito Constitucional – 4ª edição – a partir do estudo dos parâmetros
republicanos da Constituição portuguesa de 1911, que encerrou o sistema
monárquico, é correto no ensinar que:
“2.
República laica
Se no tocante à estrutura organizatória da
República a Constituição de 1911 não fez senão recolher as idéias do
liberalismo radical (e nem todas), quanto a outros domínios tentou plasmar
positivamente, em alguns artigos, o seu programa político. Um dos pontos desse
programa era a defesa de república laica e democrática. O laicismo, produto
ainda de uma visão individualista e racionalista, desdobrava-se em vários
postulados republicanos: separação do Estado e da Igreja, igualdade de cultos,
liberdade de culto, laicização do ensino, manutenção da legislação referente à
extinção das ordens religiosas (cfr. art. 3º, nºs 4 a 12). O programa
republicano era um programa racional e progressista: no fundo, tratava-se de
consagrar constitucionalmente uma espécie de “pluralismo denominacional”, ou
seja, a presença na comunidade, com iguais direitos formais de um número
indefinido de colectividades religiosas, não estando nenhuma delas tituladas
para desfrutar de um apoio estadual positivo.” (obra citada – pg. 247/8,
grifei)
Portanto,
Estado laico não é Estado ateu. Não é Estado que
proíba sejam abordados temas religiosos no cotidiano das pessoas que nele
vivem.
O Estado laico, insisto, respeita as convicções
religiosas e sua livre expressão.
O
mesmo emérito Professor José Gomes Canotilho, já agora analisando o tema à luz
dos preceitos da Constituição portuguesa de 1976, demonstra como o texto
moderno enfatiza a ampla liberdade de manifestação religiosa. De se ler:
“2.2.
A deslocação constitucional da “República laica”
1. A “laicidade da República”, a “República laica”,
é também uma das noções ligadas à tradição republicana. Para além dos “momentos
emocionais” que o laicismo republicano transporta, pode dizer-se que ele
assenta principalmente em três princípios: secularização do
poder político,neutralidade do Estado perante as Igrejas, liberdade de
consciência, religião e culto. Todavia, a Constituição de 1976,
embora herdando alguns dos princípios republicanos de 1910 (cfr. supra, Parte
II, Cap. 3, E, I), não adjectivou a República Portuguesa como “República laica”
e deslocou os problemas fundamentais do “laicismo” para o âmbito dos direitos
fundamentais. Para além de evitar a reposição da “questão do clericalismo”, a
Constituição considerou que, verdadeiramente, o que estava em causa eram
problemas relativos a direitos, liberdades e garantias: liberdade de
consciência, de religião e de culto, proibição de discriminação por motivos de
convicções ou práticas religiosas, liberdade de organização e existência das
igrejas e comunidades religiosas, liberdade de ensino da religião e o princípio
da igualdade perante o Estado de todas as religiões (cfr. art. 41º).” (obra
citada – pg. 410/411, grifei)
Nossa Constituição partilha dessa mesma diretriz,
visto que, expressamente, no inciso VI, do artigo 5º, afirma que “é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias”
O
inciso VII também assegura “a prestação de assistência religiosa nas entidades
civis e militares de internação coletiva”, e o inciso VIII não permite, seja
privada, qualquer pessoa, de direitos “por motivo de crença religiosa”.
Todo esse quadro normativo – é óbvio – não enclausura religiosos, e não religiosos, no espaço único de sua privacidade.
Todo esse quadro normativo – é óbvio – não enclausura religiosos, e não religiosos, no espaço único de sua privacidade.
Religiosos, e não religiosos, com as respectivas
crenças, ou sem qualquer crença, têm o amplo direito de expor essas suas
variadas concepções de viver na cotidiana formação da democrática sociedade. Democrática porque
acolhe, incentiva e resguarda a pluralidade dos posicionamentos, e democrática,
também, porque compreende ser infindável a interação humana, enquanto vida
houver.
Eis
preciosos ensinamentos do padre Mario de França Miranda, como expostos no seu
livro: “Igreja e Sociedade”:
“Hoje já se reconhece que as religiões têm algo a
oferecer à sociedade civil. São elas que denunciam a marginalização a que são
condenados os mais pobres, bem como as injustiças de políticas econômicas. São
elas que oferecem uma esperança que sustenta e mobiliza os mais fracos. São
elas que, livres de um dogmatismo doutrinário e impositivo, oferecem motivações
e intuições substantivas ( e não apenas funcionais ) para as questões sujeitas
ao debate público. São elas que, numa sociedade neoliberal e prisioneira de um
racionalidade funcional em busca de resultados. Desmascaram a frieza
burocrática e tecnocrática apontando os efeitos devastadores de certas
decisões. São elas que, para além das macrossoluções milagrosas, apontam para a
responsabilidade de cada um e para a imprescindível rejeição de um
individualismo cômodo,sem as quais a ética na vida pública ou o problema
ecológico não serão solucionados. Aqui a sabedoria religiosa talvez possa ser
mais eficaz do que muitos discursos dos tecnocratas.”( pg. 139-40, grifos do
autor e meu ).
E,
em síntese, correta, prossegue Mario de França Miranda:“Porque a sociedade
civil pode se tornar presa de ideologias totalitárias, prisioneira da lógica de
resultados, ou do sistema econômico dominante, ela necessita de uma instância
que a transcenda e a questione, que a desestabilize beneficamente e que a faça
progredir.”( pg. 141, grifos do autor e meu ).
Assuntos
de tamanha relevância pedem tratamento cuidadoso e responsável, pena
comprometer-se a importante missão não só de informar, mas de formar a opinião
pública.
Fonte: Blog do
Carmadélio
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