Em síntese: A Revelação Divina é como um grão de
mostarda que se vai abrindo no decorrer do tempo, de modo a explicitar
homogeneamente o que se encontra implícito na Bíblia. Os teólogos e os Bispos
vão aprofundando o significado das verdades seminalmente reveladas. São Paulo,
aliás, falava da evolução do conhecimento infantil para o da idade adulta; cf.
1Cor 13, 11s.
No diálogo ecumênico ouve-se não raro o irmão
protestante replicar: “Não está na Bíblia!”. Esta observação parece pôr termo
final ao diálogo.
1. Uma fonte e dois canais
A única fonte de fé católica é a Palavra de Deus. Deus quis
revelar-se aos homens, e o fez mediante dois canais: a via oral (também dita
“Tradição ou Transmissão divino-apostólica”) e a via escrita (chamada “Bíblia”).
A oral é anterior à escrita (Já que escrever era outrora uma arte difícil)
e a acompanha servindo de referencial para o entendimento correto da Bíblia. O Senhor Jesus
instituiu o magistério da Igreja, ao qual Ele assiste (cf. Mt 28,
18-20s) a fim de que seja o fiel porta-voz e intérprete da Palavra de Deus. É o que o
Concílio do Vaticano II ensina nestes termos:
“9. A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura são,
portanto, intimamente conexas e comunicantes entre si. Pois, derivando ambas da
mesma fonte divina ¹, fundem-se de algum modo numa só coisa. De fato, a Sagrada
Escritura é a palavra de Deus enquanto redigida sob a inspiração do Espírito
Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores
dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito
Santo aos Apóstolos para que, sob a luz do Espírito da verdade, eles, por sua
pregação, fielmente a conservem, a exponham e a difundam. Donde se segue que a
Igreja não tira só da Sagrada Escritura sua certeza a respeito de tudo o que
foi revelado. Por isso, ambas [Escritura e Tradição] devem ser recebidas e
veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (Const. Dei Verbum nº
9).
Observemos agora:
“Quando eu era criança, falava como criança, pensava
como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz
desaparecer o que era próprio de criança. Agora vemos em espelho e de maneira
confusa, mas depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado,
mas, depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13, 11s).
No Evangelho a parábola do grão de mostarda propõe a
mesma concepção: o Reino dos céus está sujeito a certa evolução ou ao
desabrochamento de virtualidades nele inseridas.
O que importa, é que essa evolução seja homogênea,
como homogênea é a evolução de uma semente. Como exemplo dessa evolução
homogênea, seja citada a doutrina referente à Maria SSma; os Evangelhos a
apresentam como Mãe de Jesus, que é Deus e Homem; por conseguinte é Mãe de
Deus. Para exercer a maternidade divina, recebendo em seu seio Deus Filho,
Maria foi “cheia de graça” (Lc 1,28) ou isenta de pecado ou ainda imaculada
desde a sua conceição; e se, jamais esteve sob o jugo do pecado, jamais foi
dominada pelo império da morte, ou seja, não conheceu a deterioração do seu
cadáver no sepulcro, mas foi elevada em corpo e alma à glória do céu, uma vez
terminado o seu curso de vida na terra.
Tal concepção é nitidamente apresentada por São
Vicente de Lérins (+ 435 aproximadamente).
2. A explanação de São Vicente de Lérins
Vicente nasceu na Gália provavelmente em fins do
século IV. Levou vida militar (dizem alguns; … vida devassa). Após o quê fez-se
monge e presbítero do Mosteiro de Lérins, no Sul da Gália. Dedicou-se ao estudo
da Teologia, donde resultou famosa obra intitulada “Comonitório”. Desde seja
extraída a seguinte passagem, tirada da Exortação 23:
“O desenvolvimento do dogma da religião cristã.
Não haverá desenvolvimento algum da religião na
Igreja de Cristo? Há certamente e enorme.
Pois que homem será tão invejoso, com tanta aversão
a Deus que se esforce por impedi-lo? Todavia deverá ser um verdadeiro progresso
da fé e não uma alteração. Com efeito, ao progresso pertence o crescimento de
uma coisa em si mesma. À alteração, ao contrário, a mudança de uma coisa em
outra.
É, portanto, necessário que, pelo passar das idades
e dos séculos, cresçam e progridam tanto em cada um como em todos, no indivíduo
como na Igreja inteira, a compreensão, a ciência, a sabedoria. Porém apenas no
próprio gênero, a saber, no mesmo dogma o mesmo sentido e a mesma significação.
Imite a religião das almas o desenvolvimento dos
corpos. No decorrer dos anos, vão -se estendendo e desenvolvendo suas partes e,
no entanto, permanecem o que eram. Há grande diferença entre a flor da
juventude e a madureza da velhice. Mas se tornam velhos aqueles mesmos que
foram adolescentes. E por mais que um homem mude de estado e de aspecto,
continuará a ter a mesma natureza, a ser a mesma pessoa.
Membros pequeninos na criancinha, grandes nos
jovens, são contudo, os mesmos. Os meninos têm o mesmo número de membros que os
adultos. E, se no tempo de idade mais adiantada neles se manifestam outros, já
aí se encontram em embrião. Desse modo, nada de novo existe nos velhos que não
esteja latente nas crianças.
Por conseguinte, esta regra de desenvolvimento é
legítima e correta. Segura e belíssima a lei do crescimento, se a perfeição da
idade completar as partes e formas sempre maiores que a sabedoria do Criador
pré-formou nos pequeninos.
Mas, se um homem se mudar em outra figura, estranha
a seu gênero, ou se se acrescentar ou diminuir ao número dos membros, sem
dúvida alguma todo o corpo morrerá ou se tornará um monstro ou, no mínimo se
enfraquecerá. Assim também deve o dogma da religião cristã seguir estas leis de
crescimento, para que os anos o consolidem, se dilate com o tempo, eleve-se com
as gerações.
Nossos antepassados semearam outrora neste campo da
Igreja as sementes do trigo da fé. Será sumamente injusto e inconveniente que
nós, os pósteros, em vez da verdade do trigo autêntico recolhamos o erro da
simulada cizânia.
Bem ao contrário, é justo e coerente que, sem
discrepância entre os inícios e o término, ceifemos das desenvolvidas
plantações de trigo a messe também de trigo do dogma. E se algo daquelas
sementes originais se desenvolver com o andar dos tempos, seja isto agora
motivo de alegria e de cultivo”.
Como se pode apreciar, o texto é muito elucidativo.
Vicente de Lérins viveu numa época conturbada pelas controvérsias sobre a graça
e o livre arbítrio, sendo debatedores, de um lado, os discípulos de S.
Agostinho (+ 430) e, de outro lado, os pelagianos, e semipelagianos pessimistas
aqueles; otimistas estes, em relação à natureza humana.
Precisamente para combater as heresias (que,
conforme a etimologia da palavra grega haíresis, são escolhas… de algumas
verdades em detrimento de outras), Vicente formulou a norma sempre válidas:
“Na Igreja Católica é preciso procurar que todos
demos adesão de fé àquilo que em toda parte, sempre e por todos foi professado
(quod ubique, quod semper, quod ab omnibus…), pois isto é própria e
verdadeiramente católico, como declara a forma e índole do vocábulo, que abarca
todas as coisas em geral” (Comonitório II 5).
Muito sabiamente o autor insiste na continuidade da
transmissão que parte dos Apóstolos, passa pelos Padres na Igreja e chega a
época mais tardia. Disto difere a heresia, que é a escolha de certas verdades
com menosprezo de outras.
3. Conclusão
De quanto foi dito, depreende-se que pode haver
artigos de fé não explícita, mas implicitamente incluídos na S. Escritura.
Sabe-se que os autores sagrados não intencionaram escrever uma Suma de
Teologia, mas redigiram seus escritos ocasionalmente, a fim de atender a
questões e problemas das comunidades destinatárias; conseqüentemente
ficaram ditos e feitos de Jesus fora do âmbito bíblico ou na Tradição oral,
como duas vezes observa São João no fim do seu Evangelho (cf. 20, 30s e 21,
24). Este depósito oral, projetando-se sobre o escrito, põe em evidência o
sentido profundo da Palavra escrita na Bíblia. Além do quê, a própria razão
humana penetra a Palavra da Bíblia, analisando seu sentido e concatenando-a em
ordem sistemática.
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¹ Antes do Concílio do Vaticano II (1962-65), perguntava-se: há uma fonte da Relação Divina (como dizem os protestantes, acenando para a Bíblia)? Ou há duas fontes: a Bíblia e a Tradição ora, como dizem muitos católicos?
¹ Antes do Concílio do Vaticano II (1962-65), perguntava-se: há uma fonte da Relação Divina (como dizem os protestantes, acenando para a Bíblia)? Ou há duas fontes: a Bíblia e a Tradição ora, como dizem muitos católicos?
Como se vê, o Concílio respondeu muito sabiamente
apontando uma única fonte e dois canais.
Revista: “Pergunte e Responderemos”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 512 – Ano 2005 – p. 56
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 512 – Ano 2005 – p. 56
Fonte: Blog do Carmadélio
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