ATENÇÃO: o autor não
entra em sua análise dentro da perspectiva teológica. Sua colocação, no
entanto-apesar dessa ausência- é bem interessante.
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Eis o que traz o pai: a
capacidade de o indivíduo deixar as suas origens para fundar uma nova família.
E de tornar-se uma mãe, se for menina, e um pai, se for menino. Ou seja, ele
significa a separação para que se funde uma nova família.”
A opinião é do psicanalista
francês Philippe Julien, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Ele ressalta a
importância do pai para a questão da liberdade e da independência da criança em
relação à mãe e destaca ainda que “o nascimento da modernidade em vários
países fez com que o pai no imaginário tenha perdido força e capacidade de
sedução”.
O psicanalista e escritor Philippe
Julien foi membro da École Freudienne de Paris. Atualmente, é membro da Lettre
lacanienne e do Centre de recherche en psychanalyse et écritures. É autor de,
entre outros, O manto de Noé – Ensaio sobre a Paternidade (Rio de Janeiro:
Revinter, 1997) e Abandonarás teu pai e tua mãe (Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 2000).
A partir de Lacan, o que
é ser um pai? Que papéis e tarefas designam essa função?
Philippe Julien – Lacan
inventou três denominações ou dimensões para designar o que é ser pai. Primeiramente
o simbólico, em segundo lugar o imaginário e, em terceiro, o real. O pai, no
plano simbólico, se refere à paternidade como uma terceira posição entre a mãe
e o filho. É uma posição instituída pela mãe enquanto mulher, cujo objeto de
desejo é o pai. Então, esse é o pai no sentido simbólico, instituído pela mãe
que deseja um homem. Este, por sua vez, existe graças à palavra da mãe. Ela
transmite ao filho que é a mulher daquele homem, que ela chama de pai, na
linguagem.
A segunda dimensão da paternidade
é o pai no plano imaginário. Ele vem do filho ou da filha, da criança.
Refere-se ao pai como imagem, imagem forte, grandiosa, majestosa, que tem uma
força de sedução e de atração. Este é o pai como imagem, imagem de homem. Ele
existe no imaginário graças a esta atração da criança pelo seu pai. Não estamos
falando do pai biológico, mas da imagem que o pai mostra em sua vida, privada e
social. Lacan, então, inventou o pai no plano real. Este vem de um homem que,
em geral, é o pai das crianças na família. O pai, no sentido real, é um homem
na condição de desejante, desejando uma mulher, em geral a mãe. Então, temos
três dimensões: na dimensão do simbólico, o pai vem da mãe; na dimensão do
imaginário, o pai vem da criança; e, na dimensão do real, o pai vem de um
homem, que tem por objeto de desejo uma mulher.
Um declínio? Não.
Impossível. Há um declínio do ponto de vista jurídico e político, mas não do
ponto de vista psicanalítico, no sentido de transmissão à criança, à geração
seguinte. O pai ainda tem a mesma importância. O declínio pode vir apenas
da sociedade civil e política. Por exemplo, em caso de divórcio, as crianças
ficam sob a guarda da mãe. E o pai vai cada vez menos ao encontro de seus filhos.
Neste caso há um declínio,
mas é jurídico. Mas, no âmbito privado, ou seja, do inconsciente, não há
declínio. Ou seja, o pai continua sendo necessário por, e em razão do complexo
de Édipo. Esta é a invenção de Freud. Para que a criança não seja incestuosa e
que ela se separe de sua mãe, ela precisa de um pai que a separe de sua mãe.
Ela se torna um filho capaz de se separar de seus pais. Seja ela um menino ou
uma menina, pouco importa. Ou seja, o Édipo que Freud inventou é ainda atual.
Como o pai pode encarnar
um agente de salvação?
Philippe Julien – O pai é
sempre necessário para salvar uma criança, para que ela cresça. Como eu disse,
a primeira função salvadora é a de que a criança não seja incestuosa, que ela
se separe de sua mãe. Isto se dá graças ao pai. O que é absolutamente
necessário. A criança, menino ou menina, não crescerá se continuar
submetido/submetida à sua mãe. E isso é salvador, é o que se chama “a
posição terceira”, contra a dualidade criança/ mãe. O pai transmite à criança o
nascimento do desejo de tal forma que um dia ela será capaz de deixar seus pais
e de se casar com um estranho da família. A capacidade de deixar suas origens
vem do pai.
Qual o papel do pai na
formação do sujeito em relação às incertezas e angústias?
Philippe Julien – Diante da
angústia da ausência da mãe, que não está sempre presente, o pai ensina à
criança o poder se separar de sua mãe, de poder viver sem ela. O pai lhe
ensina a liberdade. Falo aqui da liberdade em relação à mãe. Se não há esta
transmissão pelo pai, a criança vive na angústia da alternância da presença e
da ausência da mãe. A mãe é tanto presente quanto ausente. Por quê? Bem,
não há resposta. E essa é a angústia. Para superá-la, é preciso que o pai lhe
ensine a independência. A mãe é, primeiramente, a mulher de um homem. Ela
não é toda mãe, cem por cento. Se esta mulher é mãe cem por cento, então a
criança será uma pessoa psicótica.
Em que medida a
necessidade de pai pode se transformar pela correlação entre Deus e pai?
Philippe Julien – Sim. Ela
pode se transformar, é claro. Pois Deus é chamado de pai. Mas, veja bem,
somente no cristianismo Deus, o Deus dos Evangelhos, Deus da encarnação, é o
filho. É Jesus Cristo. Foi Jesus quem nos salvou. Não é somente o pai. É o
filho. Então, não se pode identificar Deus a somente um pai. Deus é trinitário:
Pai, Filho e Espírito. E a nossa salvação vem do filho, Jesus Cristo, e não do
pai. Eis a diferença do pai humano. Há uma diferença fundamental. É que o filho
é Deus, como o pai divino.
O que é para um filho/filha
ter um pai?
Philippe Julien – Quer
dizer que ele não é incestuoso, que não está ligado unicamente à mãe por uma
satisfação incestuosa, que a mãe não é o seu objeto de satisfação. Seu objeto
de satisfação será de encontrar, graças ao pai, fora da família, encontrando um
homem ou uma mulher vindos de uma outra família. E isto terá por conseqüência,
por exemplo, um casamento. Insisto: fora da família. Eis o que traz o pai: a
capacidade de o indivíduo deixar as suas origens para fundar uma nova família.
E de tornar-se uma mãe, se for menina, e um pai, se for menino. Ou seja, ele
significa a separação para que se funde uma nova família.
Em que sentido a
paternidade se torna uma questão política e religiosa?
Philippe Julien – A paternidade
varia segundo a cultura. Nas sociedades tradicionais, por exemplo, ou nas
sociedades monárquicas, nas quais o rei é o chefe político, evidentemente o pai
está no imaginário. Dá-se a ele uma imagem de força e de “todo poderoso”. Mas,
com o nascimento da democracia, o pai não é um rei. O pai é um cidadão como os
outros. Ou seja, o nascimento da modernidade em vários países fez com que o pai
no imaginário tenha perdido força e capacidade de sedução. A passagem à
democracia é a queda da realeza. Essa é a modernidade do século XX.
Quais são os maiores
desafios que os pais e filhos contemporâneos precisam enfrentar?
Philippe Julien – Há muitos
desafios. Há, primeiramente, a capacidade de realizar os estudos escolares e
profissionais, para obter uma profissão na sociedade. Há um segundo desafio,
que é o encontro com amigos masculinos e femininos vindos de uma outra família.
Ou seja, o lazer. Este é um desafio muito importante. E, depois, um terceiro
desafio, quando os pais são idosos e doentes, é de ajudá-los a viver e a não se
desesperar. Quando os pais chegam a uma idade avançada eles ficam doentes. É um
desafio para os filhos, que agora são grandes, de ajudar seus pais a viverem e
a não ficarem desesperados.
E na relação entre um
pai e um filho, por exemplo, nesta relação paternal, o senhor acha que há
outros desafios importantes?
Philippe Julien – Sim. Um
deles é o desafio de poder tomar uma decisão importante sem ter a autorização
do pai. De ser capaz de decidir sozinho. É um desafio importante. A
decisão solitária na existência. Sem ter todo o tempo a aprovação do pai.
Fonte:
Blog do Carmadélio
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