Lumen Fidei – A
luz da fé, assim se intitula a primeira Encíclica do Papa Francisco que hoje
foi apresentada em conferência de imprensa, no Vaticano. Dirigida aos bispos,
sacerdotes, diáconos, religiosos e religiosas e a todos os fiéis leigos, a
Encíclica – explica o Papa Francisco – já estava “quase completada” por Bento
XVI. Àquela “primeira versão” o atual Pontífice acrescentou “ulteriores
contribuições”. A finalidade do documento é recuperar o caráter de luz que é
específico da fé, capaz de iluminar toda a existência humana.Quem acredita nunca
está sozinho, porque a fé é um bem comum que ajuda a edificar as nossas
sociedades, dando esperança. E’ este é o coração da Lumen fidei. Numa época
como a nossa, a moderna – escreve o Papa – em que o acreditar se opõe ao
pesquisar e a fé é vista como um salto no vazio que impede a liberdade do
homem, é importante ter fé e confiar, com humildade e coragem, ao amor
misericordioso de Deus, que endireita as distorções da nossa história.
Testemunha
fiável da fé é Jesus, através do qual Deus atual realmente na história. Como na
vida de cada dia confiamos no arquiteto, o farmacêutico, o advogado, que
conhecem as coisas melhor que nós, assim também para a fé confiamos em Jesus,
um especialista nas coisas de Deus. A fé sem a verdade não salva, diz em
seguida o Papa – fica a ser apenas um bonito conto de fadas, sobretudo hoje em
que se vive uma crise de verdade, porque se acredita apenas na tecnologia ou
nas verdades do indivíduo, porque se teme o fanatismo e se prefere o
relativismo. Pelo contrário, a fé não é intransigente, o crente não é
arrogante: a verdade que vem do amor de Deus não se impõe pela violência, não
esmaga o indivíduo e torna possível o diálogo entre fé e razão.
POR: RÁDIO
VATICANO
CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ
1. A luz da fé é a expressão com que a tradição da
Igreja designou o grande dom trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apresenta,
no Evangelho de João: « Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em
Mim não fique nas trevas » (Jo 12, 46). E São Paulo exprime-se nestes
termos: « Porque o Deus que disse: "das trevas brilhe a luz", foi
quem brilhou nos nossos corações » (2 Cor 4, 6). No mundo pagão, com
fome de luz, tinha-se desenvolvido o culto do deus Sol, Sol invictus,
invocado na sua aurora. Embora o sol renascesse cada dia, facilmente se
percebia que era incapaz de irradiar a sua luz sobre toda a existência do
homem. De facto, o sol não ilumina toda a realidade, sendo os seus raios
incapazes de chegar até às sombras da morte, onde a vista humana se fecha para
a sua luz. Aliás « nunca se viu ninguém — afirma o mártir São Justino — pronto
a morrer pela sua fé no sol ».[1] Conscientes do
amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro
Sol, « cujos raios dão a vida ».[2] A Marta, em
lágrimas pela morte do irmão Lázaro, Jesus diz-lhe: « Eu não te disse que, se
acreditares, verás a glória de Deus? » (Jo 11, 40). Quem acredita, vê;
vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo
ressuscitado, estrela da manhã que não tem ocaso.
Uma luz ilusória?
2. E
contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos,
quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz
poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os
novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de
explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz
ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche
convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza
de proceder de forma autónoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os
caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade,
contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então
investiga ».[3] O crer
opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao
cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a
vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de
luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.
3. Por este caminho, a fé acabou por ser associada
com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na
possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé
abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter
certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos
por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz
subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas
impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar
o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autónoma
não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas,
permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E,
assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para
se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são
incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é
impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta
daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direcção.
Uma luz a redescobrir
4. Por
isso, urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua
chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De
facto, a luz da fé possui um carácter singular, sendo capaz de iluminar toda a
existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar
de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última
análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela
o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para
construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos
novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos
abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural,
aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por
um lado, provém do passado: é a luz duma memória basilar — a da vida de Jesus
–, onde o seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte.
Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai
de além da morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós
horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso « eu » isolado abrindo-o à
amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na
escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina Comédia,
depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma «
centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no céu, em mim
cintila ». [4] É precisamente
desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o
presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num
tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz.
5. Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a
Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça » (Lc 22,
32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos » na mesma fé. Consciente da
tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI
quis proclamar
este Ano da
Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande alegria de
crer, a reavivar a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra, para
a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do Senhor,
sustentados pela sua presença e pela acção do Espírito Santo. A convicção duma
fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força da sua graça,
animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Actas dos Mártires, lemos este
diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: « Onde estão os
teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: « O nosso
verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».[5] Para aqueles
cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo,
era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma
nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a
dar testemunho público até ao fim.
6. O Ano da Fé teve
início no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. Esta coincidência
permite-nos ver que o mesmo foi um Concílio sobre a fé,[6] por nos ter
convidado a repor, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, o primado de
Deus em Cristo. Na verdade, a Igreja nunca dá por descontada a fé, pois sabe
que este dom de Deus deve ser nutrido e revigorado sem cessar para continuar a
orientar o caminho dela. O Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da
experiência humana, percorrendo assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta
forma, se viu como a fé enriquece a existência humana em todas as suas
dimensões.
7. Estas considerações sobre a fé — em continuidade
com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal [7] — pretendem
juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI
escreveu nas cartas encíclicas sobre a caridade
e a esperança.
Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a
fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o
seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova
contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e amanhã, sempre está
chamado a « confirmar os irmãos » no tesouro incomensurável da fé que Deus dá a
cada homem como luz para o seu caminho.
Na fé, dom de Deus e virtude sobrenatural por Ele
infundida, reconhecemos que um grande Amor nos foi oferecido, que uma Palavra
estupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo — Palavra
encarnada –, o Espírito Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz
crescer em nós as asas da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança
e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã
rumo à plena comunhão com Deus. Mas, como é este caminho que a fé desvenda
diante de nós? Donde provém a sua luz, tão poderosa que permite iluminar o
caminho duma vida bem sucedida e fecunda, cheia de fruto?
CAPÍTULO I
ACREDITÁMOS NO AMOR
(cf. 1 Jo 4, 16)
(cf. 1 Jo 4, 16)
Abraão, nosso pai na fé
8. A fé
desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se
quisermos compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho
dos homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento. Um
posto singular ocupa Abraão, nosso pai na fé. Na sua vida, acontece um facto
impressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela-Se como um Deus que fala e o
chama por nome. A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua
voz. Deste modo, a fé assume um carácter pessoal: o Senhor não é o Deus de um
lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de
uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, capaz de entrar em
contacto com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma
Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama por nome.
9. Esta Palavra comunica a Abraão uma chamada e uma
promessa. Contém, antes de tudo, uma chamada a sair da própria terra, convite a
abrir-se a uma vida nova, início de um êxodo que o encaminha para um futuro
inesperado. A perspectiva, que a fé vai proporcionar a Abraão, estará sempre
ligada com este passo em frente que ele deve realizar: a fé « vê » na medida em
que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus. Mas tal
Palavra contém ainda uma promessa: a tua descendência será numerosa, serás pai
de um grande povo (cf. Gn 13, 16; 15, 5; 22, 17). É verdade que a fé de
Abraão, enquanto resposta a uma Palavra que a precede, será sempre um acto de
memória; contudo esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de
uma promessa, se torna capaz de abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo
do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto memória do futuro, está intimamente
ligada com a esperança.
10. A Abraão pede-se para se confiar a esta
Palavra. A fé compreende que a palavra — uma realidade aparentemente efémera e
passageira —, quando é pronunciada pelo Deus fiel, torna-se no que de mais
seguro e inabalável possa haver, possibilitando a continuidade do nosso caminho
no tempo. A fé acolhe esta Palavra como rocha segura, sobre a qual se pode
construir com alicerces firmes. Por isso, na Bíblia hebraica, a fé é indicada
pela palavra ‘emûnah, que deriva do verbo ‘amàn, cuja raiz
significa « sustentar ». O termo ‘emûnah tanto pode significar a
fidelidade de Deus como a fé do homem. O homem fiel recebe a sua força do
confiar-se nas mãos do Deus fiel. Jogando com dois significados da palavra —
presentes tanto no termo grego pistós como no correspondente latino fidelis
–, São Cirilo de Jerusalém exaltará a dignidade do cristão, que recebe o
mesmo nome de Deus: ambos são chamados « fiéis ».[8] E Santo
Agostinho explica-o assim: « O homem fiel é aquele que crê no Deus que promete;
o Deus fiel é aquele que concede o que prometeu ao homem ».[9]
11. Há ainda um aspecto da história de Abraão que é
importante para se compreender a sua fé. A Palavra de Deus, embora traga
consigo novidade e surpresa, não é de forma alguma alheia à experiência do
Patriarca. Na voz que se lhe dirige, Abraão reconhece um apelo profundo, desde
sempre inscrito no mais íntimo do seu ser. Deus associa a sua promessa com
aquele « ponto » onde desde sempre a existência do homem se mostra promissora,
ou seja, a paternidade, a geração duma nova vida: « Sara, tua mulher, dar-te-á
um filho, a quem hás-de chamar Isaac » (Gn 17, 19). O mesmo Deus que
pede a Abraão para se confiar totalmente a Ele, revela-Se como a fonte donde
provém toda a vida. Desta forma, a fé une-se com a Paternidade de Deus, da qual
brota a criação: o Deus que chama Abraão é o Deus criador, aquele que « chama à
existência o que não existe » (Rm 4, 17), aquele que, « antes da
fundação do mundo, (...) nos predestinou para sermos adoptados como seus filhos
» (Ef 1, 4-5). No caso de Abraão, a fé em Deus ilumina as raízes mais
profundas do seu ser: permite-lhe reconhecer a fonte de bondade que está na
origem de todas as coisas, e confirmar que a sua vida não deriva do nada nem do
acaso, mas de uma chamada e um amor pessoais. O Deus misterioso que o chamou
não é um Deus estranho, mas a origem de tudo e que tudo sustenta. A grande
prova da fé de Abraão, o sacrifício do filho Isaac, manifestará até que ponto
este amor originador é capaz de garantir a vida mesmo para além da morte. A
Palavra que foi capaz de suscitar um filho no seu corpo « já sem vida (…), como
sem vida estava o seio » de Sara estéril (Rm 4, 19), também será capaz
de garantir a promessa de um futuro para além de qualquer ameaça ou perigo (cf.
Heb 11, 19; Rm 4, 21).
A fé de Israel
12. A
história do povo de Israel, no livro do Êxodo, continua na esteira da fé de
Abraão. De novo, a fé nasce de um dom originador: Israel abre-se à acção de
Deus, que quer libertá-lo da sua miséria. A fé é chamada a um longo caminho,
para poder adorar o Senhor no Sinai e herdar uma terra prometida. O amor divino
possui os traços de um pai que conduz seu filho pelo caminho (cf. Dt 1,
31). A confissão de fé de Israel desenrola-se como uma narração dos benefícios
de Deus, da sua acção para libertar e conduzir o povo (cf. Dt 26, 5-11);
narração esta, que o povo transmite de geração em geração. A luz de Deus brilha
para Israel, através da comemoração dos factos realizados pelo Senhor,
recordados e confessados no culto, transmitidos pelos pais aos filhos. Deste
modo aprendemos que a luz trazida pela fé está ligada com a narração concreta
da vida, com a grata lembrança dos benefícios de Deus e com o progressivo
cumprimento das suas promessas. A arquitectura gótica exprimiu-o muito bem: nas
grandes catedrais, a luz chega do céu através dos vitrais onde está
representada a história sagrada. A luz de Deus vem-nos através da narração da
sua revelação e, assim, é capaz de iluminar o nosso caminho no tempo,
recordando os benefícios divinos e mostrando como se cumprem as suas promessas.
13. A história de Israel mostra-nos ainda a tentação
da incredulidade, em que o povo caiu várias vezes. Aparece aqui o contrário da
fé: a idolatria. Enquanto Moisés fala com Deus no Sinai, o povo não suporta o
mistério do rosto divino escondido, não suporta o tempo de espera. Por sua
natureza, a fé pede para se renunciar à posse imediata que a visão parece
oferecer; é um convite para se abrir à fonte da luz, respeitando o mistério
próprio de um Rosto que pretende revelar-se de forma pessoal e no momento
oportuno. Martin Buber citava esta definição da idolatria, dada pelo rabino de
Kock: há idolatria, « quando um rosto se dirige reverente a um rosto que não é
rosto ».[10]
Em vez da fé em Deus, prefere-se adorar o ídolo, cujo rosto se pode fixar e
cuja origem é conhecida, porque foi feito por nós. Diante do ídolo, não se
corre o risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias
seguranças, porque os ídolos « têm boca, mas não falam » (Sal 115, 5).
Compreende-se assim que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no
centro da realidade, na adoração da obra das próprias mãos. Perdida a
orientação fundamental que dá unidade à sua existência, o homem dispersa-se na
multiplicidade dos seus desejos; negando-se a esperar o tempo da promessa,
desintegra-se nos mil instantes da sua história. Por isso, a idolatria é sempre
politeísmo, movimento sem meta de um senhor para outro. A idolatria não oferece
um caminho, mas uma multiplicidade de veredas que não conduzem a uma meta
certa, antes se configuram como um labirinto. Quem não quer confiar-se a Deus,
deve ouvir as vozes dos muitos ídolos que lhe gritam: « Confia-te a mim! » A
fé, enquanto ligada à conversão, é o contrário da idolatria: é separação dos
ídolos para voltar ao Deus vivo, através de um encontro pessoal. Acreditar
significa confiar-se a um amor misericordioso que sempre acolhe e perdoa, que
sustenta e guia a existência, que se mostra poderoso na sua capacidade de
endireitar os desvios da nossa história. A fé consiste na disponibilidade a
deixar-se incessantemente transformar pela chamada de Deus. Paradoxalmente,
neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra uma estrada
segura que o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os ídolos.
14. Na fé
de Israel, sobressai também a figura de Moisés, o mediador. O povo não pode ver
o rosto de Deus; é Moisés que fala com Jahvé na montanha e comunica a todos a
vontade do Senhor. Com esta presença do mediador, Israel aprendeu a caminhar
unido. O acto de fé do indivíduo insere-se numa comunidade, no « nós » comum do
povo, que, na fé, é como um só homem: « o meu filho primogénito », assim Deus
designará todo o Israel (cf. Ex 4, 22). Aqui a mediação não se torna um
obstáculo, mas uma abertura: no encontro com os outros, o olhar abre-se para
uma verdade maior que nós mesmos. Jean Jacques Rousseau lamentava-se por não
poder ver Deus pessoalmente: « Quantos homens entre mim e Deus! » [11]
« Será assim tão simples e natural que Deus tenha ido ter com Moisés para falar
a Jean Jacques Rousseau? »[12]
A partir de uma concepção individualista e limitada do conhecimento é
impossível compreender o sentido da mediação: esta capacidade de participar na
visão do outro, saber compartilhado que é o conhecimento próprio do amor. A fé
é um dom gratuito de Deus, que exige a humildade e a coragem de fiar-se e
entregar-se para ver o caminho luminoso do encontro entre Deus e os homens, a
história da salvação.
A plenitude da fé cristã
15. «
Abraão (...) exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz » (Jo 8,
56). De acordo com estas palavras de Jesus, a fé de Abraão estava orientada
para Ele, de certo modo era visão antecipada do seu mistério. Assim o entende
Santo Agostinho, quando afirma que os Patriarcas se salvaram pela fé; não fé em
Cristo já chegado, mas fé em Cristo que havia de vir, fé proclive para o evento
futuro de Jesus.[13]
A fé cristã está centrada em Cristo; é confissão de que Jesus é o Senhor e que
Deus O ressuscitou de entre os mortos (cf. Rm 10, 9). Todas as linhas do
Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-Se o « sim » definitivo a
todas as promessas, fundamento último do nosso « Amen » a Deus (cf. 2 Cor 1,
20). A história de Jesus é a manifestação plena da fiabilidade de Deus. Se
Israel recordava os grandes actos de amor de Deus, que formavam o centro da sua
confissão e abriam o horizonte da sua fé, agora a vida de Jesus aparece como o
lugar da intervenção definitiva de Deus, a suprema manifestação do seu amor por
nós. A palavra que Deus nos dirige em Jesus já não é uma entre muitas outras,
mas a sua Palavra eterna (cf. Heb 1, 1-2). Não há nenhuma garantia maior
que Deus possa dar para nos certificar do seu amor, como nos lembra São Paulo
(cf. Rm 8, 31-39). Portanto, a fé cristã é fé no Amor pleno, no seu
poder eficaz, na sua capacidade de transformar o mundo e iluminar o tempo. «
Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16).
A fé identifica, no amor de Deus manifestado em Jesus, o fundamento sobre o
qual assenta a realidade e o seu destino último.
16. A maior prova da fiabilidade do amor de Cristo
encontra-se na sua morte pelo homem. Se dar a vida pelos amigos é a maior prova
de amor (cf. Jo 15, 13), Jesus ofereceu a sua vida por todos, mesmo por aqueles
que eram inimigos, para transformar o coração. É por isso que os evangelistas
situam, na hora da Cruz, o momento culminante do olhar de fé: naquela hora
resplandece o amor divino em toda a sua sublimidade e amplitude. São João
colocará aqui o seu testemunho solene, quando, juntamente com a Mãe de Jesus,
contemplou Aquele que trespassaram (cf. Jo 19, 37): « Aquele que viu
estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele
bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também » (Jo 19, 35). Na
sua obra O Idiota, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski faz o protagonista —
o príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro,
pintado por Hans Holbein o Jovem: « Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a
fé a alguém »;[14]
de facto, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da
morte no corpo de Cristo. E todavia é precisamente na contemplação da morte de
Jesus que a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela
como fé no seu amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para
nos salvar. Neste amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me
ama, é possível crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite
confiar-nos plenamente a Cristo.
17. Ora, a morte de Cristo desvenda a total
fiabilidade do amor de Deus à luz da sua ressurreição. Enquanto ressuscitado,
Cristo é testemunha fiável, digna de fé (cf. Ap 1, 5; Heb 2, 17),
apoio firme para a nossa fé. « Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé »,
afirma São Paulo (1 Cor 15, 17). Se o amor do Pai não tivesse feito
Jesus ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu
corpo, não seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas
da morte. Quando São Paulo fala da sua nova vida em Cristo, refere que a vive «
na fé do Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim » (Gl 2,
20). Esta « fé do Filho de Deus » é certamente a fé do Apóstolo dos gentios em
Jesus, mas supõe também a fiabilidade de Jesus, que se funda, sem dúvida, no
seu amor até à morte, mas também no facto de Ele ser Filho de Deus. Precisamente
porque é o Filho, porque está radicado de modo absoluto no Pai, Jesus pôde
vencer a morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu
a noção desta presença concreta de Deus, da sua acção no mundo; pensamos que
Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas
relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir
no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real
e, por conseguinte, não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a
felicidade que promete. E, então, seria completamente indiferente crer ou não
crer n’Ele. Ao contrário, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de
Deus, que actua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um
amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão,
morte e ressurreição de Cristo.
18. A
plenitude a que Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: na fé, Cristo
não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus,
mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não só olha
para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus
olhos: é uma participação no seu modo de ver. Em muitos âmbitos da vida, fiamo-nos
de outras pessoas que conhecem as coisas melhor do que nós: temos confiança no
arquitecto que constrói a nossa casa, no farmacêutico que nos fornece o remédio
para a cura, no advogado que nos defende no tribunal. Precisamos também de
alguém que seja fiável e perito nas coisas de Deus: Jesus, seu Filho,
apresenta-Se como Aquele que nos explica Deus (cf. Jo 1, 18). A vida de
Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele
abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele. São João
exprimiu a importância que a relação pessoal com Jesus tem para a nossa fé,
através de vários usos do verbo crer. Juntamente com o « crer que » é
verdade o que Jesus nos diz (cf. Jo 14, 10; 20, 31), João usa mais duas
expressões: « crer a (sinónimo de dar crédito a) » Jesus e « crer em » Jesus. «
Cremos a » Jesus, quando aceitamos a sua palavra, o seu testemunho, porque Ele
é verdadeiro (cf. Jo 6, 30). « Cremos em » Jesus, quando O acolhemos
pessoalmente na nossa vida e nos confiamos a Ele, aderindo a Ele no amor e
seguindo-O ao longo do caminho (cf. Jo 2, 11; 6, 47; 12, 44).
Para nos permitir conhecê-Lo, acolhê-Lo e segui-Lo,
o Filho de Deus assumiu a nossa carne; e, assim, a sua visão do Pai deu-se
também de forma humana, através de um caminho e um percurso no tempo. A fé
cristã é fé na encarnação do Verbo e na sua ressurreição na carne; é fé num
Deus que Se fez tão próximo que entrou na nossa história. A fé no Filho de Deus
feito homem em Jesus de Nazaré não nos separa da realidade; antes permite-nos
individuar o seu significado mais profundo, descobrir quanto Deus ama este
mundo e o orienta sem cessar para Si; e isto leva o cristão a comprometer-se, a
viver de modo ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra.
A salvação pela fé
19. A
partir desta participação no modo de ver de Jesus, o apóstolo Paulo deixou-nos,
nos seus escritos, uma descrição da existência crente. Aquele que acredita, ao
aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um
ser filial, torna-se filho no Filho: « Abbá, Pai » é a palavra mais
característica da experiência de Jesus, que se torna centro da experiência
cristã (cf. Rm 8, 15). A vida na fé, enquanto existência filial, é
reconhecer o dom originário e radical que está na base da existência do homem,
podendo resumir-se nesta frase de São Paulo aos Coríntios: « Que tens tu que
não tenhas recebido? » (1 Cor 4, 7). É precisamente aqui que se situa o
cerne da polémica do Apóstolo com os fariseus: a discussão sobre a salvação pela
fé ou pelas obras da lei. Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem se
quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta
pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas,
coloca-se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus.
Quem actua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê
exaurir-se e descobre que não pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei;
fecha-se, isolando-se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida torna-se
vã, as suas obras estéreis, como árvore longe da água. Assim se exprime Santo
Agostinho com a sua linguagem concisa e eficaz: « Não te afastes d’Aquele que
te fez, nem mesmo para te encontrares a ti ».[15]
Quando o homem pensa que, afastando-se de Deus, encontrar-se-á a si mesmo, a
sua existência fracassa (cf. Lc 15, 11-24). O início da salvação é a
abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que sustenta a vida e a
guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e reconhecendo-a é que
podemos ser transformados, deixando que a salvação actue em nós e torne a vida
fecunda, cheia de frutos bons. A salvação pela fé consiste em reconhecer o
primado do dom de Deus, como resume São Paulo: « Porque é pela graça que estais
salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, é dom de Deus » (Ef 2,
8).
20. A nova lógica da fé centra-se em Cristo. A fé
em Cristo salva-nos, porque é n’Ele que a vida se abre radicalmente a um Amor
que nos precede e transforma a partir de dentro, que age em nós e connosco.
Vê-se isto claramente na exegese que o Apóstolo dos gentios faz de um texto do
Deuteronómio; uma exegese que se insere na dinâmica mais profunda do Antigo
Testamento. Moisés diz ao povo que o mandamento de Deus não está demasiado alto
nem demasiado longe do homem; não se deve dizer: « Quem subirá por nós até ao
céu e no-la irá buscar? » ou « Quem atravessará o mar e no-la irá buscar? »
(cf. Dt 30, 11-14). Esta proximidade da palavra de Deus é concretizada
por São Paulo na presença de Jesus no cristão. « Não digas no teu coração: Quem
subirá ao céu? Seria para fazer com que Cristo descesse. Nem digas: Quem
descerá ao abismo? Seria para fazer com que Cristo subisse de entre os mortos »
(Rm 10, 6-7). Cristo desceu à terra e ressuscitou dos mortos: com a sua
encarnação e ressurreição, o Filho de Deus abraçou o percurso inteiro do homem
e habita nos nossos corações por meio do Espírito Santo. A fé sabe que Deus Se
tornou muito próximo de nós, que Cristo nos foi oferecido como grande dom que
nos transforma interiormente, que habita em nós, e assim nos dá a luz que
ilumina a origem e o fim da vida, o arco inteiro do percurso humano.
21.
Podemos assim compreender a novidade, a que a fé nos conduz. O crente é
transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor
que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio. São
Paulo pode afirmar: « Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim » (Gl
2, 20), e exortar: « Que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações » (Ef
3, 17). Na fé, o « eu » do crente dilata-se para ser habitado por um Outro,
para viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. É aqui que se situa
a acção própria do Espírito Santo: o cristão pode ter os olhos de Jesus, os
seus sentimentos, a sua predisposição filial, porque é feito participante do
seu Amor, que é o Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão
própria de Jesus. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito
que o infunde nos nossos corações (cf. Rm 5, 5), é impossível confessar
Jesus como Senhor (cf. 1 Cor 12, 3).
A forma eclesial da fé
22. Deste
modo, a vida do fiel torna-se existência eclesial. Quando São Paulo fala aos
cristãos de Roma do único corpo que todos os crentes formam em Cristo,
exorta-os a não se vangloriarem, mas a avaliarem-se « de acordo com a medida de
fé que Deus distribuiu a cada um » (Rm 12, 3). O crente aprende a ver-se
a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que
descobre realizada a sua própria imagem. E dado que Cristo abraça em Si mesmo
todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo
neste corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé. A imagem do
corpo não pretende reduzir o crente a simples parte de um todo anónimo, a mero
elemento de uma grande engrenagem; antes, sublinha a união vital de Cristo com
os crentes e de todos os crentes entre si (cf. Rm 12, 4-5). Os cristãos
sejam « todos um só » (cf. Gl 3, 28), sem perder a sua individualidade,
e, no serviço aos outros, cada um ganha profundamente o próprio ser.
Compreende-se assim por que motivo, fora deste corpo, desta unidade da Igreja
em Cristo — desta Igreja que, segundo as palavras de Romano Guardini, « é a
portadora histórica do olhar global de Cristo sobre o mundo »,[16]
—, a fé perca a sua « medida », já não encontre o seu equilíbrio, nem o espaço
necessário para se manter de pé. A fé tem uma forma necessariamente eclesial, é
professada partindo do corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes. A
partir deste lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens.
Uma vez escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo,
transforma-se em resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra
pronunciada, confissão de fé. São Paulo afirma: « Realmente com o coração se
crê (…) e com a boca se faz a profissão de fé » (Rm 10, 10). A fé não é
um facto privado, uma concepção individualista, uma opinião subjectiva, mas
nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio. Com
efeito, « como hão-de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como
hão-de ouvir falar, sem alguém que O anuncie? (Rm 10, 14). Concluindo, a
fé torna-se operativa no cristão a partir do dom recebido, a partir do Amor que
o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e torna participante do caminho da
Igreja, peregrina na história rumo à perfeição. Para quem foi assim
transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os seus
olhos.
CAPÍTULO II
SE NÃO ACREDITARDES,
NÃO COMPREENDEREIS
(cf. Is 7, 9)
NÃO COMPREENDEREIS
(cf. Is 7, 9)
Fé e verdade
23. Se
não acreditardes, não compreendereis (cf. Is 7, 9): foi assim que a
versão grega da Bíblia hebraica — a tradução dos Setenta, feita em Alexandria
do Egipto — traduziu as palavras do profeta Isaías ao rei Acaz, fazendo
aparecer como central, na fé, a questão do conhecimento da verdade. Entretanto,
no texto hebraico, há uma leitura diferente; aqui o profeta diz ao rei: « Se
não o acreditardes, não subsistireis ». Existe aqui um jogo de palavras com
duas formas do verbo ‘amàn: « acreditardes » (ta’aminu) e «
subsistireis » (te’amenu). Apavorado com a força dos seus inimigos, o
rei busca a segurança que lhe pode vir de uma aliança com o grande império da
Assíria; mas o profeta convida-o a confiar apenas na verdadeira rocha que não
vacila: o Deus de Israel. Uma vez que Deus é fiável, é razoável ter fé n’Ele,
construir a própria segurança sobre a sua Palavra. Este é o Deus que Isaías chamará
mais adiante, por duas vezes, o Deus-Amen, o « Deus fiel » (cf. Is 65,
16), fundamento inabalável de fidelidade à aliança. Poder-se-ia pensar que a
versão grega da Bíblia, traduzindo « subsistir » por « compreender », tivesse
realizado uma mudança profunda do texto, passando da noção bíblica de entrega a
Deus à noção grega de compreensão. E no entanto esta tradução, que aceitava
certamente o diálogo com a cultura helenista, não é alheia à dinâmica profunda
do texto hebraico; a firmeza que Isaías promete ao rei passa, realmente, pela
compreensão do agir de Deus e da unidade que Ele dá à vida do homem e à
história do povo. O profeta exorta a compreender os caminhos do Senhor,
encontrando na fidelidade de Deus o plano de sabedoria que governa os séculos.
Esta síntese entre o « compreender » e o « subsistir » é expressa por Santo
Agostinho, nas suas Confissões, quando fala da verdade em que se pode
confiar para conseguirmos ficar de pé: « Estarei firme e consolidar-me-ei em
Ti, (…) na tua verdade ». [17]
Vendo o contexto, sabemos que este Padre da Igreja quer mostrar que esta
verdade fidedigna de Deus é, como resulta da Bíblia, a sua presença fiel ao
longo da história, a sua capacidade de manter unidos os tempos, recolhendo a
dispersão dos dias do homem.[18]
24. Lido a esta luz, o texto de Isaías faz-nos
concluir: o homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela
não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros
os nossos passos. Seria uma linda fábula, a projecção dos nossos desejos de
felicidade, algo que nos satisfaz só na medida em que nos quisermos iludir; ou
então reduzir-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas permanece
sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz de
sustentar um caminho constante na vida. Se a fé fosse isso, então o rei Acaz
teria razão para não jogar a sua vida e a segurança do seu reino sobre uma
emoção. Mas não é! Precisamente pela sua ligação intrínseca com a verdade, a fé
é capaz de oferecer uma luz nova, superior aos cálculos do rei, porque vê mais
longe, compreende o agir de Deus, que é fiel à sua aliança e às suas promessas.
25.
Lembrar esta ligação da fé com a verdade é hoje mais necessário do que nunca,
precisamente por causa da crise de verdade em que vivemos. Na cultura
contemporânea, tende-se frequentemente a aceitar como verdade apenas a da
tecnologia: é verdadeiro aquilo que o homem consegue construir e medir com a
sua ciência; é verdadeiro porque funciona, e assim torna a vida mais cómoda e
aprazível. Esta verdade parece ser, hoje, a única certa, a única partilhável
com os outros, a única sobre a qual se pode conjuntamente discutir e
comprometer-se; depois haveria as verdades do indivíduo, como ser autêntico
face àquilo que cada um sente no seu íntimo, válidas apenas para o sujeito mas
que não podem ser propostas aos outros com a pretensão de servir o bem comum. A
verdade grande, aquela que explica o conjunto da vida pessoal e social, é vista
com suspeita. Porventura não foi esta — perguntam-se — a verdade pretendida
pelos grandes totalitarismos do século passado, uma verdade que impunha a
própria concepção global para esmagar a história concreta do indivíduo? No fim,
resta apenas um relativismo, no qual a questão sobre a verdade de tudo — que,
no fundo, é também a questão de Deus — já não interessa. Nesta perspectiva, é
lógico que se pretenda eliminar a ligação da religião com a verdade, porque
esta associação estaria na raiz do fanatismo, que quer emudecer quem não
partilha da crença própria. A este respeito, pode-se falar de uma grande
obnubilação da memória no nosso mundo contemporâneo; de facto, a busca da
verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos
precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso « eu »
pequeno e limitado; é uma questão relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode
ver a meta e também o sentido da estrada comum.
Conhecimento da verdade e amor
26. Nesta
situação, poderá a fé cristã prestar um serviço ao bem comum relativamente à
maneira correcta de entender a verdade? Para termos uma resposta, é necessário
reflectir sobre o tipo de conhecimento próprio da fé. Pode ajudar-nos esta
frase de Paulo: « Acredita-se com o coração » (Rm 10, 10). Este, na
Bíblia, é o centro do homem, onde se entrecruzam todas as suas dimensões: o
corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos
outros, a inteligência, a vontade, a afectividade. O coração pode manter unidas
estas dimensões, porque é o lugar onde nos abrimos à verdade e ao amor,
deixando que nos toquem e transformem profundamente. A fé transforma a pessoa
inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste
entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento
própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos
passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio
amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o
grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para
ver a realidade.
27. É conhecido o modo como o filósofo Ludwig
Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar
seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de
subjectivo, impossível de propor como verdade válida para todos.[19]
De facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria
nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não
à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos.
Mas, será esta verdadeiramente uma descrição
adequada do amor? Na realidade, o amor não se pode reduzir a um sentimento que
vai e vem. É verdade que o amor tem a ver com a nossa afectividade, mas para a
abrir à pessoa amada, e assim iniciar um caminho que faz sair da reclusão no
próprio eu e dirigir-se para a outra pessoa, a fim de construir uma relação
duradoura; o amor visa a união com a pessoa amada. E aqui se manifesta em que
sentido o amor tem necessidade da verdade: apenas na medida em que o amor
estiver fundado na verdade é que pode perdurar no tempo, superar o instante
efémero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não
tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e
não superaria a prova do tempo. Diversamente, o amor verdadeiro unifica todos
os elementos da nossa personalidade e torna-se uma luz nova que aponta para uma
vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido,
não consegue arrancar o « eu » para fora do seu isolamento, nem libertá-lo do
instante fugidio para edificar a vida e produzir fruto.
Se o amor tem necessidade da verdade, também a
verdade precisa do amor; amor e verdade não se podem separar. Sem o amor, a
verdade torna-se fria, impessoal, gravosa para a vida concreta da pessoa. A
verdade que buscamos, a verdade que dá significado aos nossos passos,
ilumina-nos quando somos tocados pelo amor. Quem ama, compreende que o amor é
experiência da verdade, compreende que é precisamente ele que abre os nossos
olhos para verem a realidade inteira, de maneira nova, em união com a pessoa
amada. Neste sentido, escreveu São Gregório Magno que o próprio amor é um
conhecimento, [20]
traz consigo uma lógica nova. Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo,
que se torna conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum
sobre todas as coisas. Na Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adopta esta
tradição, ao comentar um versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz
à amada: « Como são lindos os teus olhos de pomba! » (Ct 1, 15). [21]
Estes dois olhos — explica Saint Thierry — são a razão crente e o amor, que se
tornam um único olhar para chegar à contemplação de Deus, quando a inteligência
se faz « entendimento de um amor iluminado ». [22]
28. Esta
descoberta do amor como fonte de conhecimento, que pertence à experiência
primordial de cada homem, encontra uma expressão categorizada na concepção
bíblica da fé. Israel, saboreando o amor com que Deus o escolheu e gerou como
povo, chega a compreender a unidade do desígnio divino, desde a origem à sua realização.
O conhecimento da fé, pelo facto de nascer do amor de Deus que estabelece a
Aliança, é conhecimento que ilumina um caminho na história. É por isso também
que, na Bíblia, verdade e fidelidade caminham juntas: o Deus verdadeiro é o
Deus fiel, Aquele que mantém as suas promessas e permite, com o decorrer do
tempo, compreender o seu desígnio. Através da experiência dos profetas, no
sofrimento do exílio e na esperança de um regresso definitivo à Cidade Santa,
Israel intuiu que esta verdade de Deus se estendia mais além da própria
história, abraçando a história inteira do mundo a começar da criação. O
conhecimento da fé ilumina não só o caminho particular de um povo, mas também o
percurso inteiro do mundo criado, desde a origem até à sua consumação.
A fé como escuta e visão
29.
Justamente porque o conhecimento da fé está ligado à aliança de um Deus fiel,
que estabelece uma relação de amor com o homem e lhe dirige a Palavra, é
apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. São Paulo usará
uma fórmula que se tornou clássica: « fides ex auditu — a fé vem da
escuta » (Rm 10, 17). O conhecimento associado à palavra é sempre
conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue
obedientemente. Por isso, São Paulo falou da « obediência da fé » (cf. Rm 1,
5; 16, 26).[23]
Além disso, a fé é conhecimento ligado ao transcorrer do tempo que a palavra
necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso
de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e
amor.
A propósito do conhecimento da verdade,
pretendeu-se por vezes contrapor a escuta à visão, a qual seria peculiar da
cultura grega. Se a luz, por um lado, oferece a contemplação da totalidade a
que o homem sempre aspirou, por outro, parece não deixar espaço à liberdade,
pois desce do céu e chega directamente à vista, sem lhe pedir que responda.
Além disso, parece convidar a uma contemplação estática, separada do tempo
concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta concepção, haveria oposição
entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega, a qual, na sua busca duma compreensão
completa da realidade, teria associado o conhecimento com a visão.
Mas tal suposta oposição não é corroborada de forma
alguma pelos dados bíblicos: o Antigo Testamento combinou os dois tipos de
conhecimento, unindo a escuta da Palavra de Deus com o desejo de ver o seu
rosto. Isto tornou possível entabular diálogo com a cultura helenista, um
diálogo que pertence ao coração da Escritura. O ouvido atesta não só a chamada
pessoal e a obediência, mas também que a verdade se revela no tempo; a vista,
por sua vez, oferece a visão plena de todo o percurso, permitindo situar-nos no
grande projecto de Deus; sem tal visão, disporíamos apenas de fragmentos
isolados de um todo desconhecido.
30. A
conexão entre o ver e o ouvir, como órgãos do conhecimento da fé, aparece com a
máxima clareza no Evangelho de João, onde acreditar é simultaneamente ouvir e
ver. A escuta da fé verifica-se segundo a forma de conhecimento própria do
amor: é uma escuta pessoal, que distingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jo
10, 3-5); uma escuta que requer o seguimento, como acontece com os
primeiros discípulos que, « ouvindo [João Baptista] falar desta maneira,
seguiram Jesus » (Jo 1, 37). Por outro lado, a fé está ligada também com
a visão: umas vezes, a visão dos sinais de Jesus precede a fé, como sucede com
os judeus que, depois da ressurreição de Lázaro, « ao verem o que Jesus fez,
creram n’Ele » (Jo 11, 45); outras vezes, é a fé que leva a uma visão
mais profunda: « Se acreditares, verás a glória de Deus » (Jo 11, 40).
Por fim, acreditar e ver cruzam-se: « Quem crê em Mim (...) crê n’Aquele que Me
enviou; e quem Me vê a Mim, vê Aquele que me enviou » (Jo 12, 44-45). O
ver, graças à sua união com o ouvir, torna-se seguimento de Cristo; e a fé
aparece como um caminho do olhar em que os olhos se habituam a ver em
profundidade. E assim, na manhã de Páscoa, de João — que, ainda na escuridão
perante o túmulo vazio, « viu e começou a crer » (Jo 20, 8) — passa-se a
Maria Madalena — que já vê Jesus (cf. Jo 20, 14) e quer retê-Lo, mas é
convidada a contemplá-Lo no seu caminho para o Pai — até à plena confissão da
própria Madalena diante dos discípulos: « Vi o Senhor! » (Jo 20, 18).
Como se chega a esta síntese entre o ouvir e o ver?
A partir da pessoa concreta de Jesus, que Se vê e escuta. Ele é a Palavra que
Se fez carne e cuja glória contemplámos (cf. Jo 1, 14). A luz da fé é a
luz de um Rosto, no qual se vê o Pai. De facto, no quarto Evangelho, a verdade
que a fé apreende é a manifestação do Pai no Filho, na sua carne e nas suas
obras terrenas; verdade essa, que se pode definir como a « vida luminosa » de
Jesus.[24]
Isto significa que o conhecimento da fé não nos convida a olhar uma verdade
puramente interior; a verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no
encontro com Cristo, na contemplação da sua vida, na percepção da sua presença.
Neste sentido e a propósito da visão corpórea do Ressuscitado, São Tomás de
Aquino fala de oculata fides (uma fé que vê) dos Apóstolos:[25]
viram Jesus ressuscitado com os seus olhos e acreditaram, isto é, puderam
penetrar na profundidade daquilo que viam para confessar o Filho de Deus,
sentado à direita do Pai.
31. Só
assim, através da encarnação, através da partilha da nossa humanidade, podia
chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor. De facto, a luz do amor
nasce quando somos tocados no coração, recebendo assim, em nós, a presença
interior do amado, que nos permite reconhecer o seu mistério. Compreendemos
agora por que motivo, para João, a fé seja, juntamente com o escutar e o ver,
um tocar, como nos diz na sua Primeira Carta: « O que ouvimos, o que vimos (…)
e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida… » (1 Jo 1, 1).
Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e,
através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o
nosso coração, permitiu-nos — e permite-nos — reconhecê-Lo e confessá-Lo como
Filho de Deus. Pela fé, podemos tocá-Lo e receber a força da sua graça. Santo
Agostinho, comentando a passagem da hemorroíssa que toca Jesus para ser curada
(cf. Lc 8, 45-46), afirma: « Tocar com o coração, isto é crer ».[26]
A multidão comprime-se ao redor de Jesus, mas não O alcança com aquele toque
pessoal da fé que reconhece o seu mistério, o seu ser Filho que manifesta o
Pai. Só quando somos configurados com Jesus é que recebemos o olhar adequado
para O ver.
O diálogo entre fé e razão
32. A fé
cristã, enquanto anuncia a verdade do amor total de Deus e abre para a força
deste amor, chega ao centro mais profundo da experiência de cada homem, que vem
à luz graças ao amor e é chamado ao amor para permanecer na luz. Movidos pelo
desejo de iluminar a realidade inteira a partir do amor de Deus manifestado em
Jesus e procurando amar com este mesmo amor, os primeiros cristãos encontraram
no mundo grego, na sua fome de verdade, um parceiro idóneo para o diálogo. O
encontro da mensagem evangélica com o pensamento filosófico do mundo antigo
constituiu uma passagem decisiva para o Evangelho chegar a todos os povos e
favoreceu uma fecunda sinergia entre fé e razão, que se foi desenvolvendo no
decurso dos séculos até aos nossos dias. O Beato João Paulo
II, na sua carta encíclica Fides
et ratio, mostrou como fé e razão se reforçam mutuamente. [27]
Depois de ter encontrado a luz plena do amor de Jesus, descobrimos que havia,
em todo o nosso amor, um lampejo daquela luz e compreendemos qual era a sua
meta derradeira; e, simultaneamente, o facto de o nosso amor trazer em si uma
luz ajuda-nos a ver o caminho do amor rumo à plenitude da doação total do Filho
de Deus por nós. Neste movimento circular, a luz da fé ilumina todas as nossas
relações humanas, que podem ser vividas em união com o amor e a ternura de
Cristo.
33. Na vida de Santo Agostinho, encontramos um
exemplo significativo deste caminho: a busca da razão, com o seu desejo de
verdade e clareza, aparece integrada no horizonte da fé, do qual recebeu uma
nova compreensão. Por um lado, acolhe a filosofia grega da luz com a sua
insistência na visão: o seu encontro com o neoplatonismo fez-lhe conhecer o
paradigma da luz, que desce do alto para iluminar as coisas, tornando-se assim
um símbolo de Deus. Desta maneira, Santo Agostinho compreendeu a transcendência
divina e descobriu que todas as coisas possuem em si uma transparência, isto é,
que podiam reflectir a bondade de Deus, o Bem; assim se libertou do
maniqueísmo, em que antes vivia, que o inclinava a pensar que o bem e o mal
lutassem continuamente entre si, confundindo-se e misturando-se, sem contornos
claros. O facto de ter compreendido que Deus é luz deu à sua existência uma
nova orientação, a capacidade de reconhecer o mal de que era culpado e
voltar-se para o bem.
Mas, por outro lado, na experiência concreta de
Agostinho, que ele próprio narra nas suas Confissões, o momento decisivo
no seu caminho de fé não foi uma visão de Deus para além deste mundo, mas a
escuta, quando no jardim ouviu uma voz que lhe dizia: « Toma e lê »; ele pegou
no tomo com as Cartas de São Paulo, detendo-se no capítulo décimo terceiro da
Carta aos Romanos.[28]
Temos aqui o Deus pessoal da Bíblia, capaz de falar ao homem, descer para viver
com ele e acompanhar o seu caminho na história, manifestando-Se no tempo da
escuta e da resposta.
Mas, este encontro com o Deus da Palavra não levou
Santo Agostinho a rejeitar a luz e a visão, mas integrou ambas as perspectivas,
guiado sempre pela revelação do amor de Deus em Jesus. Deste modo, elaborou uma
filosofia da luz que reúne em si a reciprocidade própria da palavra e abre um
espaço à liberdade própria do olhar para a luz: tal como à palavra corresponde
uma resposta livre, assim também a luz encontra como resposta uma imagem que a
reflecte. Deste modo, associando escuta e visão, Santo Agostinho pôde
referir-se à « palavra que resplandece no interior do homem ».[29]
A luz torna-se, por assim dizer, a luz de uma palavra, porque é a luz de um
Rosto pessoal, uma luz que, ao iluminar-nos, nos chama e quer reflectir-se no
nosso rosto para resplandecer a partir do nosso íntimo. Por outro lado, o
desejo da visão do todo, e não apenas dos fragmentos da história, continua
presente e cumprir-se-á no fim, quando o homem — como diz o Santo de Hipona —
poderá ver e amar;[30]
e isto, não por ser capaz de possuir a luz toda, já que esta será sempre
inexaurível, mas por entrar, todo inteiro, na luz.
34. A luz
do amor, própria da fé, pode iluminar as perguntas do nosso tempo acerca da
verdade. Muitas vezes, hoje, a verdade é reduzida a autenticidade subjectiva do
indivíduo, válida apenas para a vida individual. Uma verdade comum mete-nos
medo, porque a identificamos — como dissemos atrás — com a imposição
intransigente dos totalitarismos; mas, se ela é a verdade do amor, se é a
verdade que se mostra no encontro pessoal com o Outro e com os outros, então
fica livre da reclusão no indivíduo e pode fazer parte do bem comum. Sendo a
verdade de um amor, não é verdade que se impõe pela violência, não é verdade
que esmaga o indivíduo; nascendo do amor pode chegar ao coração, ao centro
pessoal de cada homem; daqui resulta claramente que a fé não é intransigente,
mas cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; pelo
contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la
nós, é ela que nos abraça e possui. Longe de nos endurecer, a segurança da fé
põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos.
Por outro lado, enquanto unida à verdade do amor, a
luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com
corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus.
A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um
caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da
ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à
realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico,
enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a
a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se
diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar
melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência.
A fé e a busca de Deus
35. A luz
da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e
oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores
das diferentes religiões. A Carta aos Hebreus fala-nos do testemunho dos justos
que, antes da Aliança com Abraão, já procuravam a Deus com fé; lá se diz, a
propósito de Henoc, que « tinha agradado a Deus », sendo isso impossível sem a
fé, porque « quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e
recompensa aqueles que O procuram » (Heb 11, 5.6). Deste modo, é
possível compreender que o caminho do homem religioso passa pela confissão de
um Deus que cuida dele e que Se pode encontrar. Que outra recompensa poderia
Deus oferecer àqueles que O buscam, senão deixar-Se encontrar a Si mesmo? Ainda
antes de Henoc, encontramos a figura de Abel, de quem se louva igualmente a fé,
em virtude da qual foram agradáveis a Deus os seus dons, a oferenda dos
primogénitos dos seus rebanhos (cf. Heb 11, 4). O homem religioso
procura reconhecer os sinais de Deus nas experiências diárias da sua vida, no
ciclo das estações, na fecundidade da terra e em todo o movimento do universo.
Deus é luminoso, podendo ser encontrado também por aqueles que O buscam de
coração sincero.
Imagem desta busca são os Magos, guiados pela
estrela até Belém (cf. Mt 2, 1-12). A luz de Deus mostrou-se-lhes como
caminho, como estrela que os guia ao longo duma estrada a descobrir. Deste
modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem
habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve
estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que
não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos olhos do homem
mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz humana não se dissolve
na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela absorvida pela aurora,
mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica do fogo gerador, como
um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de Jesus, único Salvador,
afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na sua « vida luminosa », em
que se revela a origem e a consumação da história.[31]
Não há nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não
possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão
penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de
compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus.
Configurando-se como caminho, a fé tem a ver também
com a vida dos homens que, apesar de não acreditar, desejam-no fazer e não
cessam de procurar. Na medida em que se abrem, de coração sincero, ao amor e se
põem a caminho com a luz que conseguem captar, já vivem — sem o saber — no
caminho para a fé: procuram agir como se Deus existisse, seja porque reconhecem
a sua importância para encontrar directrizes firmes na vida comum, seja porque
sentem o desejo de luz no meio da escuridão, seja ainda porque, notando como é
grande e bela a vida, intuem que a presença de Deus ainda a tornaria maior.
Santo Ireneu de Lião refere que Abraão, antes de ouvir a voz de Deus, já O
procurava « com o desejo ardente do seu coração » e « percorria todo o mundo,
perguntando-se onde pudesse estar Deus », até que « Deus teve piedade daquele
que, sozinho, O procurava no silêncio ».[32]
Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está
sustentado pela sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar
os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor.
Fé e teologia
36. Como
luz que é, a fé convida-nos a penetrar nela, a explorar sempre mais o horizonte
que ilumina, para conhecer melhor o que amamos. Deste desejo nasce a teologia
cristã; assim, é claro que a teologia é impossível sem a fé e pertence ao
próprio movimento da fé, que procura a compreensão mais profunda da
auto-revelação de Deus, culminada no Mistério de Cristo. A primeira
consequência é que, na teologia, não se verifica apenas um esforço da razão
para perscrutar e conhecer, como nas ciências experimentais. Deus não pode ser
reduzido a objecto; Ele é Sujeito que Se dá a conhecer e manifesta na relação
pessoa a pessoa. A fé recta orienta a razão para se abrir à luz que vem de
Deus, a fim de que ela, guiada pelo amor à verdade, possa conhecer Deus de
forma mais profunda. Os grandes doutores e teólogos medievais declararam que a
teologia, enquanto ciência da fé, é uma participação no conhecimento que Deus
tem de Si mesmo. Por isso, a teologia não é apenas palavra sobre Deus, mas,
antes de tudo, acolhimento e busca de uma compreensão mais profunda da palavra
que Deus nos dirige: palavra que Deus pronuncia sobre Si mesmo, porque é um
diálogo eterno de comunhão, no âmbito do qual é admitido o homem.[33]
Assim, é própria da teologia a humildade, que se deixa « tocar » por Deus,
reconhece os seus limites face ao Mistério e se encoraja a explorar, com a
disciplina própria da razão, as riquezas insondáveis deste Mistério.
Além disso, a teologia partilha a forma eclesial da
fé; a sua luz é a luz do sujeito crente que é a Igreja. Isto implica, por um
lado, que a teologia esteja ao serviço da fé dos cristãos, vise humildemente
preservar e aprofundar o crer de todos, sobretudo dos mais simples; e por
outro, dado que vive da fé, a teologia não considera o magistério do Papa e dos
Bispos em comunhão com ele como algo de extrínseco, um limite à sua liberdade,
mas, pelo contrário, como um dos seus momentos internos constitutivos, enquanto
o magistério assegura o contacto com a fonte originária, oferecendo assim a
certeza de beber na Palavra de Cristo em toda a sua integridade.
CAPÍTULO III
TRANSMITO-VOS AQUILO QUE RECEBI
(cf. 1 Cor 15, 3)
(cf. 1 Cor 15, 3)
A Igreja, mãe da nossa fé
37. Quem
se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode
guardar este dom para si mesmo. Uma vez que é escuta e visão, a fé transmite-se
também como palavra e como luz; dirigindo-se aos Coríntios, o apóstolo Paulo
utiliza precisamente estas duas imagens. Por um lado, diz: « Animados do mesmo
espírito de fé, conforme o que está escrito: Acreditei e por isso falei, também
nós acreditamos e por isso falamos » (2 Cor 4, 13); a palavra recebida
faz-se resposta, confissão, e assim ecoa para os outros, convidando-os a crer.
Por outro, São Paulo refere-se também à luz: « E nós todos que, com o rosto
descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria
imagem » (2 Cor 3, 18); é uma luz que se reflecte de rosto em rosto,
como sucedeu com Moisés cujo rosto reflectia a glória de Deus depois de ter
falado com Ele: « [Deus] brilhou nos nossos corações, para irradiar o
conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo » (2 Cor 4,
6). A luz de Jesus brilha no rosto dos cristãos como num espelho, e assim se
difunde chegando até nós, para que também nós possamos participar desta visão e
reflectir para outros a sua luz, da mesma forma que a luz do círio, na liturgia
de Páscoa, acende muitas outras velas. A fé transmite-se por assim dizer sob a
forma de contacto, de pessoa a pessoa, como uma chama se acende noutra chama.
Os cristãos, na sua pobreza, lançam uma semente tão fecunda que se torna uma
grande árvore, capaz de encher o mundo de frutos.
38. A transmissão da fé, que brilha para as pessoas
de todos os lugares, passa também através do eixo do tempo, de geração em
geração. Dado que a fé nasce de um encontro que acontece na história e ilumina
o nosso caminho no tempo, a mesma deve ser transmitida ao longo dos séculos. É
através de uma cadeia ininterrupta de testemunhos que nos chega o rosto de
Jesus. Como é possível isto? Como se pode estar seguro de beber no « verdadeiro
Jesus » através dos séculos? Se o homem fosse um indivíduo isolado, se
quiséssemos partir apenas do « eu » individual, que pretende encontrar em si
mesmo a firmeza do seu conhecimento, tal certeza seria impossível; não posso,
por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas,
esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em
relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no
encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são
de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos
nossos pais que nos deram a vida e o nome. A própria linguagem, as palavras com
que interpretamos a nossa vida e a realidade inteira chegam-nos através dos
outros, conservadas na memória viva de outros; o conhecimento de nós mesmos só
é possível quando participamos duma memória mais ampla. O mesmo acontece com a
fé, que leva à plenitude o modo humano de entender: o passado da fé, aquele
acto de amor de Jesus que gerou no mundo uma vida nova, chega até nós na
memória de outros, das testemunhas, guardado vivo naquele sujeito único de
memória que é a Igreja; esta é uma Mãe que nos ensina a falar a linguagem da
fé. São João insistiu sobre este aspecto no seu Evangelho, unindo conjuntamente
fé e memória e associando as duas à acção do Espírito Santo que, como diz
Jesus, « há-de recordar-vos tudo » (Jo 14, 26). O Amor, que é o Espírito
e que habita na Igreja, mantém unidos entre si todos os tempos e faz-nos
contemporâneos de Jesus, tornando-Se assim o guia do nosso caminho na fé.
39. É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma
opção individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação
isolada entre o « eu » do fiel e o « Tu » divino, entre o sujeito autónomo e
Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao « nós », verifica-se sempre dentro da
comunhão da Igreja. Assim no-lo recorda a forma dialogada do Credo, que se usa
na liturgia baptismal. O crer exprime-se como resposta a um convite, a uma
palavra que não provém de mim, mas deve ser escutada; por isso, insere-se no
interior de um diálogo, não pode ser uma mera confissão que nasce do indivíduo:
só é possível responder « creio » em primeira pessoa, porque se pertence a uma
comunhão grande, dizendo também « cremos ». Esta abertura ao « nós » eclesial
realiza-se de acordo com a abertura própria do amor de Deus, que não é apenas
relação entre o Pai e o Filho, entre « eu » e « tu », mas, no Espírito, é
também um « nós », uma comunhão de pessoas. Por isso mesmo, quem crê nunca está
sozinho; e, pela mesma razão, a fé tende a difundir-se, a convidar outros para
a sua alegria. Quem recebe a fé, descobre que os espaços do próprio « eu » se
alargam, gerando-se nele novas relações que enriquecem a vida. Assim o exprimiu
vigorosamente Tertuliano ao dizer do catecúmeno que, tendo sido recebido numa
nova família « depois do banho do novo nascimento », é acolhido na casa da Mãe
para erguer as mãos e rezar, juntamente com os irmãos, o Pai Nosso.[34]
Os sacramentos e a transmissão da fé
40. Como
sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua
memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas
antes que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da
Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo,
que temos contacto vivo com a memória fundadora. E aquilo que foi transmitido
pelos Apóstolos, como afirma o Concílio Ecuménico Vaticano II, « abrange tudo
quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé;
e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas
as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita ».[35]
De facto, a fé tem necessidade de um âmbito onde se
possa testemunhar e comunicar, e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao
que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia,
talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se
comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que
nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no
coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações
vivas na comunhão com Deus e com os outros. Para se transmitir tal plenitude,
existe um meio especial que põe em jogo a pessoa inteira: corpo e espírito,
interioridade e relações. Este meio são os sacramentos celebrados na liturgia
da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e
épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida,
como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias. Por isso,
se é verdade que os sacramentos são os sacramentos da fé,[36]
há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé
passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do homem e na
existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem para o mistério
do eterno.
41. A
transmissão da fé verifica-se, em primeiro lugar, através do Baptismo. Poderia
parecer que este sacramento fosse apenas um modo para simbolizar a confissão de
fé, um acto pedagógico para quem precise de imagens e gestos, e do qual seria
possível fundamentalmente prescindir. Mas não é assim, como no-lo recorda uma
palavra de São Paulo: « Pelo Baptismo fomos sepultados com Cristo na morte,
para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do
Pai, também nós caminhemos numa vida nova » (Rm 6, 4); nele, tornamo-nos
nova criatura e filhos adoptivos de Deus. E mais adiante o Apóstolo diz que o
cristão foi confiado a uma « forma de ensino » (typos didachés), a que
obedece de coração (cf. Rm 6, 17): no Baptismo, o homem recebe também
uma doutrina que deve professar e uma forma concreta de vida que requer o
envolvimento de toda a sua pessoa, encaminhando-a para o bem; é transferido
para um novo âmbito, confiado a um novo ambiente, a uma nova maneira comum de
agir, na Igreja. Deste modo, o Baptismo recorda-nos que a fé não é obra do
indivíduo isolado, não é um acto que o homem possa realizar contando apenas com
as próprias forças, mas tem de ser recebida, entrando na comunhão eclesial que
transmite o dom de Deus: ninguém se baptiza a si mesmo, tal como ninguém vem
sozinho à existência. Fomos baptizados.
42. Quais são os elementos baptismais que nos
introduzem nesta nova « forma de ensino »? Sobre o catecúmeno é invocado, em
primeiro lugar, o nome da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. E deste modo
se oferece, logo desde o princípio, uma síntese do caminho da fé: o Deus que
chamou Abraão e quis chamar-Se seu Deus, o Deus que revelou o seu nome a
Moisés, o Deus que, ao entregar-nos o seu Filho, nos revelou plenamente o mistério
do seu Nome, dá à pessoa baptizada uma nova identidade filial. Desta forma, se
evidencia o sentido da imersão na água que se realiza no Baptismo: a água é,
simultaneamente, símbolo de morte, que nos convida a passar pela conversão do «
eu » tendo em vista a sua abertura a um « Eu » maior, e símbolo de vida, do
ventre onde renascemos para seguir Cristo na sua nova existência. Deste modo,
através da imersão na água, o Baptismo fala-nos da estrutura encarnada da fé. A
acção de Cristo toca-nos na nossa realidade pessoal, transformando-nos
radicalmente, tornando-nos filhos adoptivos de Deus, participantes da natureza
divina; e assim modifica todas as nossas relações, a nossa situação concreta na
terra e no universo, abrindo-as à própria vida de comunhão d’Ele. Este
dinamismo de transformação próprio do Baptismo ajuda-nos a perceber a
importância do catecumenato, que hoje — mesmo em sociedades de antigas raízes
cristãs, onde um número crescente de adultos se aproxima do sacramento
baptismal — se reveste de singular relevância para a nova evangelização. É o
itinerário de preparação para o Baptismo, para a transformação da vida inteira
em Cristo.
Para compreender a ligação entre o Baptismo e a fé,
pode ajudar-nos a recordação de um texto do profeta Isaías, que já aparece
associado com o Baptismo na literatura cristã antiga: « Terá o seu refúgio em
rochas elevadas, terá (…) água em abundância » (Is 33, 16).[37]
Resgatado da morte pela água, o baptizado pode manter-se de pé sobre « rochas
elevadas », porque encontrou a solidez à qual confiar-se; e, assim, a água de
morte transformou-se em água de vida. O texto grego descrevia-a como água pistòs,
água « fiel »: a água do Baptismo é fiel, podendo confiar-nos a ela porque a
sua corrente entra na dinâmica de amor de Jesus, fonte de segurança para o
nosso caminho na vida.
43. A
estrutura do Baptismo, a sua configuração como renascimento no qual recebemos
um nome novo e uma vida nova, ajuda-nos a compreender o sentido e a importância
do Baptismo das crianças. Uma criança não é capaz de um acto livre que acolha a
fé: ainda não a pode confessar sozinha e, por isso mesmo, é confessada pelos
seus pais e pelos padrinhos em nome dela. A fé é vivida no âmbito da comunidade
da Igreja, insere-se num « nós » comum. Assim, a criança pode ser sustentada
por outros, pelos seus pais e padrinhos, e pode ser acolhida na fé deles que é
a fé da Igreja, simbolizada pela luz que o pai toma do círio na liturgia
baptismal. Esta estrutura do Baptismo põe em evidência a importância da
sinergia entre a Igreja e a família na transmissão da fé. Os pais são chamados
— como diz Santo Agostinho — não só a gerar os filhos para a vida, mas a
levá-los a Deus, para que sejam, através do Baptismo, regenerados como filhos
de Deus, recebam o dom da fé.[38]
Assim, juntamente com a vida, é-lhes dada a orientação fundamental da
existência e a segurança de um bom futuro; orientação esta, que será
ulteriormente corroborada no sacramento da Confirmação com o selo indelével do
Espírito Santo.
44. A natureza sacramental da fé encontra a sua
máxima expressão na Eucaristia. Esta é alimento precioso da fé, encontro com
Cristo presente de maneira real no seu acto supremo de amor: o dom de Si mesmo
que gera vida. Na Eucaristia, temos o cruzamento dos dois eixos sobre os quais
a fé percorre o seu caminho. Por um lado, o eixo da história: a Eucaristia é
acto de memória, actualização do mistério, em que o passado, como um evento de
morte e ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de
antecipar a plenitude final; no-lo recorda a liturgia com o seu hodie, o
« hoje » dos mistérios da salvação. Por outro lado, encontra-se aqui também o
eixo que conduz do mundo visível ao invisível: na Eucaristia, aprendemos a ver
a profundidade do real. O pão e o vinho transformam-se no Corpo e Sangue de
Cristo, que Se faz presente no seu caminho pascal para o Pai: este movimento
introduz-nos, corpo e alma, no movimento de toda a criação para a sua plenitude
em Deus.
45. Na celebração
dos sacramentos, a Igreja transmite a sua memória, particularmente com a
profissão de fé. Nesta, não se trata tanto de prestar assentimento a um
conjunto de verdades abstractas, como sobretudo fazer a vida toda entrar na
comunhão plena com o Deus Vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é
convidado a entrar no mistério que professa e a deixar-se transformar por
aquilo que confessa. Para compreender o sentido desta afirmação, pensemos em
primeiro lugar no conteúdo do Credo. Este tem uma estrutura trinitária:
o Pai e o Filho unem-Se no Espírito de amor. Deste modo o crente afirma que o
centro do ser, o segredo mais profundo de todas as coisas é a comunhão divina.
Além disso, o Credo contém uma confissão cristológica: repassam-se os
mistérios da vida de Jesus até à sua morte, ressurreição e ascensão ao Céu, na
esperança da sua vinda final na glória. E, consequentemente, afirma-se que este
Deus-comunhão, permuta de amor entre o Pai e o Filho no Espírito, é capaz de
abraçar a história do homem, de introduzi-lo no seu dinamismo de comunhão, que
tem, no Pai, a sua origem e meta final. Aquele que confessa a fé sente-se
implicado na verdade que confessa; não pode pronunciar, com verdade, as
palavras do Credo, sem ser por isso mesmo transformado, sem mergulhar na
história de amor que o abraça, que dilata o seu ser tornando-o parte de uma
grande comunhão, do sujeito último que pronuncia o Credo: a Igreja.
Todas as verdades, em que cremos, afirmam o mistério da vida nova da fé como
caminho de comunhão com o Deus Vivo.
Fé, oração e Decálogo
46. Há
mais dois elementos que são essenciais na transmissão fiel da memória da
Igreja. O primeiro é a Oração do Senhor, o Pai Nosso; nela, o cristão
aprende a partilhar a própria experiência espiritual de Cristo e começa a ver
com os olhos d’Ele. A partir d’Aquele que é Luz da Luz, do Filho Unigénito do
Pai, também nós conhecemos a Deus e podemos inflamar outros no desejo de se
aproximarem d’Ele.
Igualmente importante é ainda a ligação entre a fé
e o Decálogo. Dissemos já que a fé se apresenta como um caminho, uma estrada a
percorrer, aberta pelo encontro com o Deus vivo; por isso, à luz da fé, da
entrega total ao Deus que salva, o Decálogo adquire a sua verdade mais
profunda, contida nas palavras que introduzem os Dez Mandamentos: « Eu sou o
Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto » (Ex 20, 2). O
Decálogo não é um conjunto de preceitos negativos, mas de indicações concretas
para sair do deserto do « eu » auto-referencial, fechado em si mesmo, e entrar
em diálogo com Deus, deixando-se abraçar pela sua misericórdia a fim de a
irradiar. Deste modo, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustentáculo de
tudo, deixa-se mover por este amor para caminhar rumo à plenitude da comunhão
com Deus. O Decálogo aparece como o caminho da gratidão, da resposta de amor,
que é possível porque, na fé, nos abrimos à experiência do amor de Deus que nos
transforma. E este caminho recebe uma luz nova de tudo aquilo que Jesus ensina
no Sermão da Montanha (cf. Mt 5 - 7).
Toquei assim os quatro elementos que resumem o
tesouro de memória que a Igreja transmite: a confissão de fé, a celebração dos
sacramentos, o caminho do Decálogo, a oração. À volta deles se estruturou
tradicionalmente a catequese da Igreja, como se pode ver no Catecismo
da Igreja Católica, instrumento fundamental para aquele acto com que a
Igreja comunica o conteúdo inteiro da fé, « tudo aquilo que ela é e tudo quanto
acredita ».[39]
A unidade e a integridade da fé
47. A
unidade da Igreja, no tempo e no espaço, está ligada com a unidade da fé: « Há
um só Corpo e um só Espírito, (...) uma só fé » (Ef 4, 4-5). Hoje poderá
parecer realizável a união dos homens com base num compromisso comum, na
amizade, na partilha da mesma sorte com uma meta comum; mas sentimos muita
dificuldade em conceber uma unidade na mesma verdade; parece-nos que uma união
do género se oporia à liberdade do pensamento e à autonomia do sujeito. Pelo
contrário, a experiência do amor diz-nos que é possível termos uma visão comum
precisamente no amor: neste, aprendemos a ver a realidade com os olhos do outro
e isto, longe de nos empobrecer, enriquece o nosso olhar. O amor verdadeiro, à
medida do amor divino, exige a verdade e, no olhar comum da verdade que é Jesus
Cristo, torna-se firme e profundo. Esta é também a alegria da fé: a unidade de
visão num só corpo e num só espírito. Neste sentido, São Leão Magno podia
afirmar: « Se a fé não é una, não é fé ».[40]
Qual é o segredo desta unidade? A fé é una, em
primeiro lugar, pela unidade de Deus conhecido e confessado. Todos os artigos
de fé se referem a Ele, são caminhos para conhecer o seu ser e o seu agir; por
isso, possuem uma unidade superior a tudo quanto possamos construir com o nosso
pensamento, possuem a unidade que nos enriquece, porque se comunica a nós e nos
torna um.
Depois, a fé é una, porque se dirige ao único
Senhor, à vida de Jesus, à história concreta que Ele partilha connosco. Santo
Ireneu de Lião deixou isto claro, contrapondo-o aos hereges gnósticos. Estes
sustentavam a existência de dois tipos de fé: uma fé rude, a fé dos simples,
imperfeita, que se mantinha ao nível da carne de Cristo e da contemplação dos
seus mistérios; e outro tipo de fé mais profunda e perfeita, a fé verdadeira
reservada para um círculo restrito de iniciados, que se elevava com o intelecto
para além da carne de Jesus rumo aos mistérios da divindade desconhecida.
Contra esta pretensão, que ainda em nossos dias continua a ter o seu encanto e
os seus seguidores, Santo Ireneu reafirma que a fé é uma só, porque passa
sempre pelo ponto concreto da encarnação, sem nunca superar a carne e a
história de Cristo, dado que Deus Se quis revelar plenamente nela. É por isso
que não há diferença, na fé, entre « aquele que é capaz de falar dela mais
tempo » e « aquele que fala pouco », entre aquele que é mais dotado e quem se
mostra menos capaz: nem o primeiro pode ampliar a fé, nem o segundo diminuí-la.[41]
Por último, a fé é una, porque é partilhada por
toda a Igreja, que é um só corpo e um só Espírito: na comunhão do único sujeito
que é a Igreja, recebemos um olhar comum. Confessando a mesma fé, apoiamo-nos
sobre a mesma rocha, somos transformados pelo mesmo Espírito de amor,
irradiamos uma única luz e temos um único olhar para penetrar na realidade.
48. Dado
que a fé é uma só, deve-se confessar em toda a sua pureza e integridade.
Precisamente porque todos os artigos da fé estão unitariamente ligados, negar
um deles — mesmo dos que possam parecer menos importantes — equivale a
danificar o todo. Cada época pode encontrar pontos da fé mais fáceis ou mais
difíceis de aceitar; por isso, é importante vigiar para que se transmita todo o
depósito da fé (cf. 1 Tm 6, 20) e para que se insista oportunamente
sobre todos os aspectos da confissão de fé. De facto, visto que a unidade da fé
é a unidade da Igreja, tirar algo à fé é fazê-lo à verdade da comunhão. Os
Padres descreveram a fé como um corpo, o corpo da verdade, com diversos
membros, analogamente ao que se passa no corpo de Cristo com o seu
prolongamento na Igreja.[42]
A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja virgem, com o
seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão
com o Senhor.[43]
A unidade da fé é, por conseguinte, a de um organismo vivo, como bem evidenciou
o Beato John Henry Newman, quando enumera, entre as notas características para
distinguir a continuidade da doutrina no tempo, o seu poder de assimilar em si
tudo o que encontra, nos diversos âmbitos em que se torna presente, nas
diversas culturas que encontra,[44]
tudo purificando e levando à sua melhor expressão. É assim que a fé se mostra
universal, católica, porque a sua luz cresce para iluminar todo o universo,
toda a história.
49. Como serviço à unidade da fé e à sua
transmissão íntegra, o Senhor deu à Igreja o dom da sucessão apostólica. Por
seu intermédio, fica garantida a continuidade da memória da Igreja, e é
possível beber, com certeza, na fonte pura donde surge a fé; assim a garantia
da ligação com a origem é-nos dada por pessoas vivas, o que equivale à fé viva
que a Igreja transmite. Esta fé viva assenta sobre a fidelidade das testemunhas
que foram escolhidas pelo Senhor para tal tarefa; por isso, o magistério fala
sempre em obediência à Palavra originária, sobre a qual se baseia a fé, e é
fiável porque se entrega à Palavra que escuta, guarda e expõe.[45]
No discurso de despedida aos anciãos de Éfeso, em Mileto, referido por São
Lucas nos Actos dos Apóstolos, São Paulo atesta que cumpriu o encargo, que lhe
foi confiado pelo Senhor, de lhes anunciar toda a vontade de Deus (cf. Act 20,
27); é graças ao magistério da Igreja que nos pode chegar, íntegra, esta vontade
e, com ela, a alegria de a podermos cumprir plenamente.
CAPÍTULO IV
DEUS PREPARA
PARA ELES UMA CIDADE
(cf. Heb 11, 16)
PARA ELES UMA CIDADE
(cf. Heb 11, 16)
A fé e o bem comum
50. Ao
apresentar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta
aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé; esta não se apresenta
apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde
os homens possam habitar uns com os outros. O primeiro construtor é Noé, que,
na arca, consegue salvar a sua família (cf. Heb 11, 7). Depois aparece
Abraão, de quem se diz que, pela fé, habitara em tendas, esperando a cidade de
alicerces firmes (cf. Heb 11, 9-10). Vemos assim surgir, relacionada com
a fé, uma nova fiabilidade, uma nova solidez, que só Deus pode dar. Se o homem
de fé assenta sobre o Deus-Amen, o Deus fiel (cf. Is 65, 16),
tornando-se assim firme ele mesmo, podemos acrescentar que a firmeza da fé se
refere também à cidade que Deus está a preparar para o homem. A fé revela quão
firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no
meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do
crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e
segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade
fiável.
51. Devido precisamente à sua ligação com o amor
(cf. Gl 5, 6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do
direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra
o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no
dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício
para a plenitude do amor. A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das
relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem fiáveis, enriquecerem a
vida comum. A fé não afasta do mundo, nem é alheia ao esforço concreto dos
nossos contemporâneos. Sem um amor fiável, nada poderia manter verdadeiramente
unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada
sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza
de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode
gerar. A fé faz compreender a arquitectura das relações humanas, porque
identifica o seu fundamento último e destino definitivo em Deus, no seu amor, e
assim ilumina a arte da sua construção, tornando-se um serviço ao bem comum.
Por isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas
o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além,
mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um
futuro de esperança. A Carta aos Hebreus oferece um exemplo disto mesmo, ao
nomear entre os homens de fé Samuel e David, a quem a fé permitiu « exercerem a
justiça » (11, 33). A expressão refere-se aqui à sua justiça no governar,
àquela sabedoria que traz a paz ao povo (cf. 1 Sm 12, 3-5; 2 Sm 8,
15). As mãos da fé levantam-se para o céu, mas fazem-no ao mesmo tempo que
edificam, na caridade, uma cidade construída sobre relações que têm como
alicerce o amor de Deus.
A fé e a família
52. No
caminho de Abraão para a cidade futura, a Carta aos Hebreus alude à bênção que
se transmite dos pais aos filhos (cf. 11, 20-21). O primeiro âmbito da cidade
dos homens iluminado pela fé é a família; penso, antes de mais nada, na união
estável do homem e da mulher no matrimónio. Tal união nasce do seu amor, sinal
e presença do amor de Deus, nasce do reconhecimento e aceitação do bem que é a
diferença sexual, em virtude da qual os cônjuges se podem unir numa só carne
(cf. Gn 2, 24) e são capazes de gerar uma nova vida, manifestação da
bondade do Criador, da sua sabedoria e do seu desígnio de amor. Fundados sobre
este amor, homem e mulher podem prometer-se amor mútuo com um gesto que
compromete a vida inteira e que lembra muitos traços da fé: prometer um amor
que dure para sempre é possível quando se descobre um desígnio maior que os
próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à pessoa
amada. Depois, a fé pode ajudar a individuar em toda a sua profundidade e
riqueza a geração dos filhos, porque faz reconhecer nela o amor criador que nos
dá e nos entrega o mistério de uma nova pessoa; foi assim que Sara, pela sua
fé, se tornou mãe, apoiando-se na fidelidade de Deus à sua promessa (cf. Heb
11, 11).
53. Em família, a fé acompanha todas as idades da
vida, a começar pela infância: as crianças aprendem a confiar no amor de seus
pais. Por isso, é importante que os pais cultivem práticas de fé comuns na
família, que acompanhem o amadurecimento da fé dos filhos. Sobretudo os jovens,
que atravessam uma idade da vida tão complexa, rica e importante para a fé,
devem sentir a proximidade e a atenção da família e da comunidade eclesial no
seu caminho de crescimento da fé. Todos vimos como, nas Jornadas Mundiais da
Juventude, os jovens mostram a alegria da fé, o compromisso de viver uma fé
cada vez mais sólida e generosa. Os jovens têm o desejo de uma vida grande; o
encontro com Cristo, o deixar-se conquistar e guiar pelo seu amor alarga o
horizonte da existência, dá-lhe uma esperança firme que não desilude. A fé não
é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação da vida: faz descobrir uma
grande chamada — a vocação ao amor — e assegura que este amor é fiável, que
vale a pena entregar-se a ele, porque o seu fundamento se encontra na
fidelidade de Deus, que é mais forte do que toda a nossa fragilidade.
Uma luz para a vida em sociedade
54.
Assimilada e aprofundada em família, a fé torna-se luz para iluminar todas as
relações sociais. Como experiência da paternidade e da misericórdia de Deus,
dilata-se depois em caminho fraterno. Na Idade Moderna, procurou-se construir a
fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco
a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um
Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir; por isso, é
necessário voltar à verdadeira raiz da fraternidade. Desde o seu início, a
história de fé foi uma história de fraternidade, embora não desprovida de
conflitos. Deus chama Abraão para sair da sua terra, prometendo fazer dele uma
única e grande nação, um grande povo, sobre o qual repousa a Bênção divina (cf.
Gn 12, 1-3). À medida que a história da salvação avança, o homem
descobre que Deus quer fazer a todos participar como irmãos da única bênção,
que encontra a sua plenitude em Jesus, para que todos se tornem um só. O amor
inexaurível do Pai é-nos comunicado em Jesus, também através da presença do
irmão. A fé ensina-nos a ver que, em cada homem, há uma bênção para mim, que a
luz do rosto de Deus me ilumina através do rosto do irmão.
Quantos benefícios trouxe o olhar da fé cristã à
cidade dos homens para a sua vida em comum! Graças à fé, compreendemos a dignidade
única de cada pessoa, que não era tão evidente no mundo antigo. No século II, o
pagão Celso censurava os cristãos por algo que lhe parecia uma ilusão e um
engano: pensar que Deus tivesse criado o mundo para o homem, colocando-o no
vértice do universo inteiro. « Porquê pretender que [a verdura] cresça para os
homens, em vez de crescer para os mais selvagens dos animais sem razão? »[46]
« Se olhássemos a terra do alto do céu, que diferença se nos ofereceria entre
as nossas actividades e as das formigas e das abelhas? »[47]
No centro da fé bíblica, há o amor de Deus, o seu cuidado concreto por cada
pessoa, o seu desejo de salvação que abraça toda a humanidade e a criação
inteira e que atinge o clímax na encarnação, morte e ressurreição de Jesus
Cristo. Quando se obscurece esta realidade, falta o critério para individuar o
que torna preciosa e única a vida do homem; e este perde o seu lugar no
universo, extravia-se na natureza, renunciando à própria responsabilidade
moral, ou então pretende ser árbitro absoluto, arrogando-se um poder de
manipulação sem limites.
55. Além
disso a fé, ao revelar-nos o amor de Deus Criador, faz-nos olhar com maior
respeito para a natureza, fazendo-nos reconhecer nela uma gramática escrita por
Ele e uma habitação que nos foi confiada para ser cultivada e guardada;
ajuda-nos a encontrar modelos de progresso, que não se baseiem apenas na
utilidade e no lucro mas considerem a criação como dom, de que todos somos
devedores; ensina-nos a individuar formas justas de governo, reconhecendo que a
autoridade vem de Deus para estar ao serviço do bem comum. A fé afirma também a
possibilidade do perdão, que muitas vezes requer tempo, canseira, paciência e
empenho; um perdão possível quando se descobre que o bem é sempre mais
originário e mais forte que o mal, que a palavra com que Deus afirma a nossa
vida é mais profunda do que todas as nossas negações. Aliás, mesmo dum ponto de
vista simplesmente antropológico, a unidade é superior ao conflito; devemos
preocupar-nos também com o conflito, mas vivendo-o de tal modo que nos leve a
resolvê-lo, a superá-lo, como elo duma cadeia, num avanço para a unidade.
Quando a fé esmorece, há o risco de esmorecerem
também os fundamentos do viver, como advertia o poeta Thomas Sterls Eliot: «
Precisais porventura que se vos diga que até aqueles modestos sucessos / que
vos permitem ser orgulhosos de uma sociedade educada / dificilmente
sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado? »[48]
Se tiramos a fé em Deus das nossas cidades, enfraquecer-se-á a confiança entre
nós, apenas o medo nos manterá unidos, e a estabilidade ficará ameaçada. Afirma
a Carta aos Hebreus: « Deus não Se envergonha de ser chamado o "seu
Deus", porque preparou para eles uma cidade » (Heb 11, 16). A
expressão « não se envergonha » tem conotado um reconhecimento público:
pretende-se afirmar que Deus, com o seu agir concreto, confessa publicamente a
sua presença entre nós, o seu desejo de tornar firmes as relações entre os
homens. Porventura vamos ser nós a envergonhar-nos de chamar a Deus « o nosso
Deus »? Seremos por acaso nós a recusar-nos a confessá-Lo como tal na nossa
vida pública, a propor a grandeza da vida comum que Ele torna possível? A fé
ilumina a vida social: possui uma luz criadora para cada momento novo da
história, porque coloca todos os acontecimentos em relação com a origem e o
destino de tudo no Pai que nos ama.
Uma força consoladora no sofrimento
56. São
Paulo, falando aos cristãos de Corinto das suas tribulações e sofrimentos,
coloca a sua fé em relação com a pregação do Evangelho. De facto, diz que nele
se cumpre esta passagem da Escritura: « Acreditei e por isso falei » (2 Cor 4,
13). O Apóstolo refere-se a uma frase do Salmo 116, onde o salmista exclama: «
Eu tinha confiança, mesmo quando disse: "A minha aflição é muito
grande!" » (v. 10). Falar da fé comporta frequentemente falar também de
provas dolorosas, mas é precisamente nelas que São Paulo vê o anúncio mais
convincente do Evangelho, porque é na fraqueza e no sofrimento que sobressai e
se descobre o poder de Deus que supera a nossa fraqueza e o nosso sofrimento. O
próprio Apóstolo se encontra numa situação de morte que redunda em vida para os
cristãos (cf. 2 Cor 4, 7-12). Na hora da prova, a fé ilumina-nos; e é
precisamente no sofrimento e na fraqueza que se torna claro como « não nos
pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor » (2 Cor 4, 5). O
capítulo 11 da Carta aos Hebreus termina com a referência a quantos sofreram
pela fé, entre os quais ocupa um lugar particular Moisés que tomou sobre si a
humilhação de Cristo (cf. vv. 26.35-38). O cristão sabe que o sofrimento não
pode ser eliminado, mas pode adquirir um sentido: pode tornar-se acto de amor,
entrega nas mãos de Deus que não nos abandona e, deste modo, ser uma etapa de
crescimento na fé e no amor. Contemplando a união de Cristo com o Pai, mesmo no
momento de maior sofrimento na cruz (cf. Mc 15, 34), o cristão aprende a
participar no olhar próprio de Jesus; até a morte fica iluminada, podendo ser
vivida como a última chamada da fé, o último « Sai da tua terra » (cf. Gn 12,
1), o último « Vem! » pronunciado pelo Pai, a quem nos entregamos com a
confiança de que Ele nos tornará firmes também na passagem definitiva.
57. A luz da fé não nos faz esquecer os sofrimentos
do mundo. Os que sofrem foram mediadores de luz para tantos homens e mulheres
de fé; tal foi o leproso para São Francisco de Assis, ou os pobres para a Beata
Teresa de Calcutá. Compreenderam o mistério que há neles; aproximando-se deles,
certamente não cancelaram todos os seus sofrimentos, nem puderam explicar todo
o mal. A fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia
os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho. Ao homem que sofre,
Deus não dá um raciocínio que explique tudo, mas oferece a sua resposta sob a
forma duma presença que o acompanha, duma história de bem que se une a cada
história de sofrimento para nela abrir uma brecha de luz. Em Cristo, o próprio
Deus quis partilhar connosco esta estrada e oferecer-nos o seu olhar para nela
vermos a luz. Cristo é aquele que, tendo suportado a dor, Se tornou « autor e
consumador da fé » (Heb 12, 2).
O sofrimento recorda-nos que o serviço da fé ao bem
comum é sempre serviço de esperança que nos faz olhar em frente, sabendo que só
a partir de Deus, do futuro que vem de Jesus ressuscitado, é que a nossa
sociedade pode encontrar alicerces sólidos e duradouros. Neste sentido, a fé
está unida à esperança, porque, embora a nossa morada aqui na terra se vá
destruindo, há uma habitação eterna que Deus já inaugurou em Cristo, no seu
corpo (cf. 2 Cor 4, 16 — 5, 5). Assim, o dinamismo de fé, esperança e
caridade (cf. 1 Ts 1, 3; 1 Cor 13, 13) faz-nos abraçar as
preocupações de todos os homens, no nosso caminho rumo àquela cidade, « cujo
arquitecto e construtor é o próprio Deus » (Heb 11, 10), porque « a
esperança não engana » (Rm 5, 5).
Unida à fé e à caridade, a esperança projecta-nos
para um futuro certo, que se coloca numa perspectiva diferente relativamente às
propostas ilusórias dos ídolos do mundo, mas que dá novo impulso e nova força à
vida de todos os dias. Não deixemos que nos roubem a esperança, nem permitamos
que esta seja anulada por soluções e propostas imediatas que nos bloqueiam no
caminho, que « fragmentam » o tempo transformando-o em espaço. O tempo é sempre
superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo que o tempo
projecta para o futuro e impele a caminhar na esperança.
FELIZ DAQUELA QUE ACREDITOU
(cf. Lc 1, 45)
58. Na parábola do semeador, São Lucas refere estas
palavras com que o Senhor explica o significado da « terra boa »: « São aqueles
que, tendo ouvido a palavra com um coração bom e virtuoso, conservam-na e dão
fruto com a sua perseverança » (Lc 8, 15). No contexto do Evangelho de
Lucas, a menção do coração bom e virtuoso, em referência à Palavra ouvida e
conservada, pode constituir um retrato implícito da fé da Virgem Maria; o
próprio evangelista nos fala da memória de Maria, dizendo que conservava no
coração tudo aquilo que ouvia e via, de modo que a Palavra produzisse fruto na
sua vida. A Mãe do Senhor é ícone perfeito da fé, como dirá Santa Isabel: «
Feliz de ti que acreditaste » (Lc 1, 45).
Em Maria, Filha de Sião, tem cumprimento a longa
história de fé do Antigo Testamento, com a narração de tantas mulheres fiéis a
começar por Sara; mulheres que eram, juntamente com os Patriarcas, o lugar onde
a promessa de Deus se cumpria e a vida nova desabrochava. Na plenitude dos
tempos, a Palavra de Deus dirigiu-se a Maria, e Ela acolheu-a com todo o seu
ser, no seu coração, para que n’Ela tomasse carne e nascesse como luz para os homens.
O mártir São Justino, na obra Diálogo com Trifão, tem uma expressão
significativa ao dizer que Maria, quando aceitou a mensagem do Anjo, concebeu «
fé e alegria ».[49]
De facto, na Mãe de Jesus, a fé mostrou-se cheia de fruto e, quando a nossa
vida espiritual dá fruto, enchemo-nos de alegria, que é o sinal mais claro da
grandeza da fé. Na sua vida, Maria realizou a peregrinação da fé seguindo o seu
Filho.[50]
Assim, em Maria, o caminho de fé do Antigo Testamento foi assumido no
seguimento de Jesus e deixa-se transformar por Ele, entrando no olhar próprio
do Filho de Deus encarnado.
59.
Podemos dizer que, na Bem-aventurada Virgem Maria, se cumpre aquilo em que
insisti anteriormente, isto é, que o crente se envolve todo na sua confissão de
fé. Pelo seu vínculo com Jesus, Maria está intimamente associada com aquilo que
acreditamos. Na concepção virginal de Maria, temos um sinal claro da filiação
divina de Cristo: a origem eterna de Cristo está no Pai — Ele é o Filho em
sentido total e único — e por isso nasce, no tempo, sem intervenção do homem.
Sendo Filho, Jesus pode trazer ao mundo um novo início e uma nova luz, a
plenitude do amor fiel de Deus que Se entrega aos homens. Por outro lado, a
verdadeira maternidade de Maria garantiu, ao Filho de Deus, uma verdadeira
história humana, uma verdadeira carne na qual morrerá na cruz e ressuscitará
dos mortos. Maria acompanhá-Lo-á até à cruz (cf. Jo 19, 25), donde a sua
maternidade se estenderá a todo o discípulo de seu Filho (cf. Jo 19,
26-27). Estará presente também no Cenáculo, depois da ressurreição e ascensão
de Jesus, para implorar com os Apóstolos o dom do Espírito (cf. Act 1,
14). O movimento de amor entre o Pai e o Filho no Espírito percorreu a nossa
história; Cristo atrai-nos a Si para nos poder salvar (cf. Jo 12, 32).
No centro da fé, encontra-se a confissão de Jesus, Filho de Deus, nascido de
mulher, que nos introduz, pelo dom do Espírito Santo, na filiação adoptiva (cf.
Gl 4, 4-6).
60. A Maria, Mãe da Igreja e Mãe da nossa fé, nos
dirigimos, rezando-Lhe:
Ajudai, ó Mãe, a nossa fé.
Abri o nosso ouvido à Palavra, para reconhecermos a
voz de Deus e a sua chamada.
Despertai em nós o desejo de seguir os seus passos,
saindo da nossa terra e acolhendo a sua promessa.
Ajudai-nos a deixar-nos tocar pelo seu amor, para
podermos tocá-Lo com a fé.
Ajudai-nos a confiar-nos plenamente a Ele, a crer
no seu amor, sobretudo nos momentos de tribulação e cruz, quando a nossa fé é
chamada a amadurecer.
Semeai, na nossa fé, a alegria do Ressuscitado.
Recordai-nos que quem crê nunca está sozinho.
Ensinai-nos a ver com os olhos de Jesus, para que
Ele seja luz no nosso caminho. E que esta luz da fé cresça sempre em nós até
chegar aquele dia sem ocaso que é o próprio Cristo, vosso Filho, nosso Senhor.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 de
Junho, solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, do ano 2013, primeiro de
Pontificado.
FRANCISCUS
[3] « Brief an Elisabeth Nietzsche (11 de Junho de 1865) », in: Werke in
drei Bänden (Munique 1954), 953-954.
[6] « Embora o Concílio não trate expressamente da fé, todavia fala dela em
cada página, reconhece o seu carácter vital e sobrenatural, supõe-na íntegra e
forte e constrói sobre ela os seus ensinamentos. Bastaria lembrar as
declarações conciliares (...) para nos darmos conta da importância essencial
que o Concílio, coerente com a tradição doutrinal da Igreja, atribui à fé, à
verdadeira fé, aquela que tem Cristo como fonte e, como canal, o magistério da
Igreja » [Paulo VI, Audiência Geral (8 de Março de 1967): Insegnamenti
V (1967), 705].
[7] Cf., por exemplo, Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei
Filius, III: DS 3008-3020; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a
divina Revelação Dei
Verbum, 5; Catecismo
da Igreja Católica, 153-165.
[16] « Vom Wesen katholischer Weltanschauung
(1923) », in: Unterscheidung des Christlichen. Gesammelte Studien 1923-1963 (Mainz
1963), 24.
[19] Cf. G. H. von Wright (coord.), Vermischte Bemerkungen / Culture and
Value (Oxford 1991), 32-33 e 61-64.
[23] « A Deus que revela é devida a "obediência da fé" (Rm 16,
26; cf. Rm 1, 5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se
total e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obséquio pleno da
inteligência e da vontade e prestando voluntário assentimento à sua revelação.
Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda
da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e
converte a Deus o coração, abre os olhos do entendimento, e dá a todos a
suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a compreensão da revelação seja
sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé
mediante os seus dons » (Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a divina
Revelação Dei
Verbum, 5).
[24] Cf. Heinrich Schlier, « Meditationen über den Johanneischen Begriff der
Wahrheit », in: Besinnung auf das Neue Testament. Exegetische Aufsätze und
Vorträge 2 (Friburgo, Basel, Viena 1959), 272.
[31] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. Dominus
Iesus (6 de Agosto de 2000), 15: AAS 92 (2000), 756.
[33] Cf. Boaventura, Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V
(Quaracchi 1891), 201; In I librum sententiarum, Proem., q. 1, resp.: Opera
Omnia, I (Quaracchi 1891), 7; Tomásde Aquino, Summa theologiae, I,
q. 1.
[38] Cf. De nuptiis et concupiscentia, I, 4, 5: PL 44, 413 («
Habent quippe intentionem generandi regenerandos, ut qui ex eis saeculi filii
nascuntur in Dei filios renascantur »).
[43] Cf. Agostinho, De sancta virginitate, 48, 48: PL 40, 424-
425 (« Servatur et in fide inviolata quaedam castitas virginalis, qua Ecclesia
uni viro virgo casta cooptatur »).
[44] Cf. An Essay on the Development of Christian Doctrine (Uniform
Edition: Longmans, Green and Company, Londres 1868-1881), 185-189.
[48] « Choruses from The Rock », in: The Collected Poems and Plays
1909-1950 (Nova Iorque 1980), 106.
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